quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Falta alguém

"Nascemos com um prazo limitado para interpretar o mundo. Fazemos o que podemos. O legado de todos que nos precederam nesse esforço pode ajudar ou confundir, e em útima intâcia ninguém nunca prova nada. Atribuir um propósito superior a um lance qualquer da vida é construir uma ficção muito pessoal. Dar sentido ao mundo é um ato criativo. Uma visão de mundo é uma narrativa." - Daniel Galera, Cordilheira
         Prólogo
        A janela lateral, além de esparsas árvores, mostra as margens do rio. Automóveis, caminhões, motocicletas. Nem o rabecão tem pressa. Jornalistas e presidentes desconhecidos batizam os caminhos. Café se espalha num jardim, tudo é levado a ele pelos movimentos do dragão chinês na grande murada. O som em seus fones poderia ser mais alto: "Morfeu deitou, adormeceu e esqueceu de mim". Seria essa a origem de sua despedida mencionando os campos oníricos de Morfeu? A semana mal dormida tornava aquela a trilha sonora perfeita. Nem voltando para casa os olhos fechavam.




        Nem Tom Zé, tampouco Arnaldo Antunes. Perdera o prazo por duas vezes por falta de inspiração. Talvez, esta não fosse a palavra correta. Não soubera convencer seu violão a acompanhá-lo na empreitada. Ainda que misto de madeira e aço, tinha, também, seus caprichos. A 3ª edição do Prêmio Musique contaria com Dinho Ouro Preto do Capital Inicial. Sua proximidade com as obras da banda tornaram a ideia da participação algo entre o natural e um dever moral. Por anos nutria o desejo de obter um ebow, um arco eletrônico capaz de criar o timbre único que conhecera ouvindo Passageiro. Os ensaios da Falsa Modéstia precisavam de criatividade para suprir a falta de equipamentos tais pedais de efeito. Ele lembra da decepção ao adquirir um slide para tentar tornar o solo do cover de Fogo mais fluído. Aquela canção era certamente uma das responsáveis por seu deleite e apreço aos sóis menores.
        Conferiu a letra de Dinho e Alvin L:

Alguém

Alguém
que veja o infinito
Com o sol no olhar
Alguém
que seja um oceano
em que eu possa mergulhar
Não diga nada
Não faça nada
Não pense nada
Por enquanto
Só me espere
Até te encontrar

Alguém
que não faça sentido
E eu possa entender
Alguém
que ouça o que eu digo
E saiba responder
Fique sentada
Fique parada
Fique calada
Só me espere
Até te encontrar

Alguém que viva o presente
Alguém que saiba ver além
Alguém que nunca me abandone
E não me faça de refém

Não diga nada
Não faça nada
Não pense nada
Por enquanto
Só me espere
Até te encontrar

       Uma, duas, cinco. Perdeu, além dos registros, as contas das quase melodias que surgiram até os acordes se acomodarem na harmonia final. Dinho afirmara em uma entrevista ao Estadão que colocar uma letra no jornal para artistas desconhecidos musicarem era "como se jogar em precipício" pois poderia "aparecer de tudo". E essa curiosidade pelo desconhecido deveria ser uma das "melhores formas de compor". Qual era o pensamento dos fãs ante a possibilidade de gravarem com o ídolo? 2010. Não faziam muitos dias ele assistira a uma performance do Capital Inicial no primeiro festival SWU. Também pode conhecer a banda! 
      Curiosamente - ou não - o vídeo de sua participação fora enviado no dia 27 de Outubro. Esse dia marcava uma apresentação da Falsa Modéstia na IV Mostra Musical da E.E. Esli Garcia Diniz, em Arujá. A primeira compilação de canções tinha como objetivo este dia, que também ficou marcado por ser o dia em que seu amigo de longa data, Anderson Gonçalves, o havia apresentado a uma figura mítica que atenderia por "menina em sépia". No futuro.
      Este amigo, junto a Gabriel Sandrini (fã ardoroso de Capital) formava Os Venâncios e em meio a seus devaneios, teorias e causos publicaram um texto divulgando a participação de Thales Salgado no concurso. (Para os que amam fontes, o post pode ser conferido aqui: https://goo.gl/cOrhOc). Que outras formas de divulgação ele pode ter usado? Conversar com as amizades próximas pelo Msn Messenger, Orkut, ou Twitter? Não era a criatura mais sociável, sua memória o traía. Suas formas de disseminar o conteúdo, precárias. Foi tomado por apreensão quanto ao resultado. Era a primeira letra de um músico consagrado com a qual ele lidava. Teria Dinho ouvido ao menos um minuto de sua canção? Nunca saberia. Seu desempenho não fora expressivo e, além do mais, em virtude dos direitos autorais nada poderia fazer com a música. Seria, tão somente, o eterno símbolo de sua participação.

        Epílogo
       No ano seguinte, recebi uma mensagem de Anderson com versos. Uma palavra tematizando a falta. Não aquela dos amores românticos, também não era uma sensação depressiva, maligna. Era, por assim dizer, a falta em seu estado mais puro. A sensação de que ainda havia algo por sentir. Algo verdadeiro. Conversando com ele recentemente enquanto pensava no post, confidenciou que havia, então, uma necessidade de transcrever os pensamentos. Por vezes me parece que o único conselho que sei dar é "escreva, é um bom hábito". O que parece vazio. Em uma breve conversa com uma psicóloga fui apresentado ao conceito de falta como algo imaginário, nunca muito bem definido, com uma ideia ilusória de completude plena, perfeita. Uma das faltas que eu sentia em 2011 era mais concreta: havia uma melodia sem letra, despida da possibilidade de transmitir sentido. Calcei a letra de Anderson tal fosse uma luva. Era a chance de retrabalhar os sons e a canção que outrora se chamava Alguém, passou a chamar Falta. O mais interessante de lidar com palavras de outrem é enxergar quantas possibilidades existem nos pensamentos. Posso estar a me repetir, mas poder chegar a resultados que eu não alcançaria sozinho é uma das interessâncias da vida. A melodia tinha sentido. Tinha que concordar, um dia tudo volta para o seu lugar e vai ficar como devia estar.

Falta (2011)

Falta
A cor e o sabor,
As rimas e repetições
Falta 
Os olhos que brilhavam
Encantados de emoção

Refrão:
Talvez a falta não seja nada, ou seja, algo
Eu só sinto que faz falta tudo isso a faltar

Falta
O frio na barriga,
Falta aquele bem-estar
Falta 
A palavra escrita,
Um coração a palpitar

Refrão

Faltam os tempos de incerteza
Os de insatisfação também
Faltam os gritos de alegria
Ao saber que estamos bem. 

Página do moleskine mostrando os versos de Anderson e como ficaram configurados à canção.

       P.S: Caso haja a curiosidade de saber como era a canção que tomou parte no concurso ela pode ser acessada aqui: https://goo.gl/DbJsDj 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Muito mais que o amor no Sesc Bom Retiro

Semáforo cruzado adentrei o bar. Peço ao garçom uma Cachaça. A TV capta a transmissão estrangeira do Miss Universe. Preciso de mais que isso Para Abrir os Olhos. Los Chicos de Ayer estão aqui, como estavam na noite anterior e na outra, eles surgem Nessa Cidade e sussuram "Engole", Como se fosse preciso dizer... Enquanto Isso na Lanchonete, sim, eu Sei Onde Você Está, não deixei de pensar No que a Gente Podia Ser. Mesmo noutro Hemisfério you would still Beloved. Mas divago. Na lanchonete você deve estar com algum Amigo. Também Estive nessa posição. Tanto orgulho. Nenhum de nós Desmentindo a Despedida. Tiro do bolso as passagens vencidas: Promessas de Navegação. O fim d'A Escalada das Montanhas de Mim Mesmo foi tardio? N'outros tempos seria o fim... Das Lágrimas... sim, eu iria Depressa e te diria: - Olha pra Mim, Pelo Amor do Amor! E você seria Meu Sol. Oh Colorful Thoughts of Existance. Dado o cenário atual, O que Seria de Nós? Mar de interrogações! Só uma certeza possuo. Se tiver que ser na Bala, Vai. Mi Vida Eres Tu.

Ass. Robert - Dezembro de 2015

        Hoje é terça-feira, quase seis meses haviam se passado desde o Sesc Santo Amaro. Entre datas havíamos conseguido ver o Reginaldo Lincoln na Sensorial Discos com a Musicatta e também o David Dafré junto a Raphael Ota na Monster Music. Ainda assim, poder reencontrar a banda é uma experiência distinta. Demorou pra ser chegou traduzindo o fim da espera. "Boa noite São Paulo, é um prazer passar o domingo nesse bairro histórico de outros tempos". Uma apresentação contida antes da banda partir para Eu sei onde você está, um dos destaques do disco de 2013, com o violino de Fernanda Kostchak surgindo solar na ponte da música. Depois Hélio e Reginaldo surgem misteriosos 'O inverno acabou'. Eles dizem que o público não entendeu, mas entenderão. A ansiedade a cada menção às novas composições é inegável. Mesmo de Longe coloca os holofotes no baixista enquanto David e Hélio se sentam no Sofá de Chekhov cenográfico. Seus instrumentos conversam em riso.
        O palco é tingido de vermelho quando Júlio Nhanha dá o tom no teclado para Quando eu cheguei na cidade, canção que espero esteja no próximo registro em estúdio. O arranjo estava diferente do mostrado em abril em Santo Amaro. Agora contando com o suporte vocal de Reginaldo. Meses atrás a banda anunciou que em breve O que a gente podia ser desapareceria do repertório. Me entristeci por ser uma favorita pessoal, essa nova canção tem potencial para um posto desses. Gosto como após o violino se anunciar num lamento solene vem o peso da guitarra de Dafré em sua elegância imóvel. Em seguida, a banda anuncia uma música muito antiga sem dizer o nome. É Miss Universe! Canção que eu não via há séculos. É bom ver como a banda tem cartas à disposição, como os vocais do guitarrista. Bem que Los Chicos de Ayer poderia aparecer um dia desses.
        Provando que desde os anos setenta os sonhos não envelhecem a banda apresenta sua versão para Clube da Esquina nº2; canção que faz parte da coletânea Mil Tom, lançada em 2015 comemorando os 50 anos de carreira de Milton Nascimento. As luzes se transformam e em meio ao vermelho e o azul a banda entoa Nessa Cidade. "É uma necessidade" Pode se perceber a energia aumentando no público com Kezo Nogueira na bateria, antes de todos os presentes gritarem intensamente os versos finais: "E não vem me dizer que é errado, você sabe o que aconteceu. Boa parte de mim vai embora, a sua parte que hoje sou eu". Hélio aproveita a aparição de Calil Barros para que conste nos autos o agradecimento da banda pela presença de alguém que está com a banda há pelo menos dez anos. Esses momentos são sempre bons por mostrarem o número de pessoas envolvidas para que o show como conhecemos aconteça, desde quem fica na lojinha até aqueles que agem nos bastidores.


Foto: Helen Moraes (Mesmo de longe)


        "Fazer show sóbrio é um perigo", a espontaneidade e o bom humor fica aparente quando a banda fala como estava sendo para eles depois de alterar as ordens das músicas depois de muito tempo. Para o deleite do público vem a parceria de Flanders e Nhanhá: A patinha da garça; Me lembrei de quando vi Hemisfério no Sesc Pinheiros no final do ano passado. O repertório da banda é tão rico que permite que passeiem por diversos períodos de seu cancioneiro sem decepcionar nem os que acompanham há anos tampouco os que, com certeza, estavam vivendo pela primeira vez a experiência da banda ao vivo. Se me detenho em cada momento ou frase visto entre as músicas é justamente por ser o diferencial que não é captado nos dvds, como o instante em que o tecladista assume o baixo, o baixista surge com o bandolim e a banda parece improvisar, não reconheço os versos "E tudo isso quer dizer que te amo" - música nova? versão? homenagem? - e isso não impede de apreciar. Vem Pelo amor do amor e depois Hélio filosofa "de que adianta o amor se a gente não tem a nós mesmos?" ele pede ao público que cante com ele Olha pra mim. Não que ele precisasse, todos os presentes estão entregues. David surge com o clarinete que sempre me lembra de A cruz e a espada do RPM. Parecia que o show estava acabando.
        Mas não estava! Tinham sido até então "apenas" dez músicas. Com ares do acústico do Lobão veio Meu Sol, canção de amor composta por Lincoln e Flanders. Uma das responsáveis por apresentar as novas cores do Vanguart a um novo público quando fez parte da trilha sonora da novela global Além do Horizonte alguns anos atrás. Logo após a banda executar Pra onde eu devo ir algumas vozes na plateia pedem por Robert. A banda brinca dizendo que infelizmente essa não vai rolar nunca, que autocrítica é importante. Entram então em consenso para tocar Depressa, que já estava riscada no repertório do domingo, prosseguem com ...Das lágrimas, as linhas do violino de Fernanda sempre abrilhantam as composições.
        Quente é o medo é outra das novas que veio com um arranjo distinto, dessa vez sem trompete e violino. Poder acompanhar as transformações das músicas em primeira mão é maravilhoso, afinal, pode se encontrar diversas entrevistas do Vanguart em que falam como buscam a melhor sonoridade em cada arranjo, não é por serem multi-instrumentistas que todas os arranjos tem que contar com todos os instrumentos. Essa coerência é louvável, nunca houve o interesse de se repetir em fórmulas. Depois de ver a violinista cantando The House of The Rising Sun num show em homenagem a Dylan, me tornei mais um do time que espera alguma participação vocal, afinal, como nem todas as músicas tem arranjo para violino poderia ser uma forma de mante-la sempre no palco... Divago. Ainda em Dylan, Hélio Flanders solta o Nobody feels any pain de Just Like a Woman mas é apenas um tease. Performam Estive, seguida por Se tiver que ser na bala, vai. Em meio a despedida a banda afirma que em breve virá o álbum novo, este é um dos últimos da turnê. Para encerrar vem as já esperadas Semáforo e Mi vida eres tu. "Só a gente pode nos libertar"... Quando pensei que ficaria longe dos shows do Vanguart por um tempo eles vem com a notícia de uma noite acústica no mesmo dia de meu aniversário. Vou me presentear com um pouco mais dessa banda que amo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Da Infância

"Medo de sangue depois do pastor
Caixa-forte em formato de Buda
Lapís de pele sem minha cor
Dragão sem fogo na vidraça da chuva
Fora o que eu queria
Nada me faltava"








São Paulo, 12 de Outubro de 2037.

         As águas do Sapucaí, hoje, me escapam. Enquanto via os caçadores de tabaranas em seus barcos ao redor só me importava refrescar o verão. O que os impedia de simplesmente encher um saco de estopa com os peixes? Talvez eu ainda não saiba. Lembro de pegar a minha Caloi azulinha, cuidava dela como fosse o celular, não, até melhor, parando para pensar. Passei quase uma dezena e meia de anos com aquela bike!. Não conheço um celular que funcione por tanto!  Teve uma vez que até quebrei o retrovisor do carro do vizinho, a sorte foi que ele bebia tanto que pensou a obra de arte era dele mesmo. Eu já nem sentia os pedais apostando corridas imaginárias com as meninas em patins ou as que colecionavam pedras nos joelhos pelo rolimã. A turma toda era rueira demais.
         O que não queria dizer abrir mão da soldadesca verde fincando bandeiras por todo o território inimigo. Quando meus primos não estavam, o conjunto de dominó virava um porta-aviões. Acho que a coisa mais estranha para mim, era imaginar o que Nossa Senhora tinha com as crianças, quando era em Cosme e Damião que se ganhava doces. Cresci para não saber nada? Sabia que domingo quando meu pai acordasse colocaria para tocar um samba-rock, era um sinal para o dia ser bom! Mesmo que ele viesse com alguma ideia como "ler o jornal em voz alta" antes de sair para brincar. Num aniversário de nem sei quantos anos parecia que estava a rua toda no sítio da minha avó, nem mesmo cabiam na cabana de zinco. Lembro da minha mãe me dando um carro de fórmula um do Ayrton Senna, todos comemos rocambole de goiaba e foi provavelmente um dos primeiros dias em que pensei "essa tal de vida é realmente boa".

         

          A vizinha fazia gelinho com mangas coquinho que disputávamos com os passarinhos. Quando estava de férias em Araraquara, a gente via a fuligem da queima de palha da cana e chamava de balõezinhos. Corríamos pelas ruas de barro batido pra pegar e brincar de mãozinha-preta. E eu correria mesmo que os dedos estivessem todos esfolados. Visitava minhas primas que ficavam na casa da árvore na beira do lago, era engraçado, todas elas faziam de tudo, jogavam bola, empinavam pipas, até quando eu só estava preocupado com o episódio de Dragon Ball. Acho que por crescer vendo esse tipo de coisa nunca entrei nas frescuras de "isso é coisa pra menino ou pra menina". Acho que é o tipo de coisa para se passar para os filhos, hoje em dia até saiyajins tem cabelo rosé. 
         Teve uma vez em que eu estava apenas parado, vendo uma menina fascinada com a lua e o sol juntos. Nem era noite!. Eu me perguntava se eu parecia surpreso, ao menos, do alto de meus nove anos, não iria admitir ser impressionado por nada. Pelo menos não ali. Mas a que preço? Ninguém precisaria saber. A questão é, suponho ninguém se importe com isso hoje em dia. Tenho aqui pra mim que algo daquele tempo permanece. Esperei por anos que fosse surgir um estalo dizendo "agora tu és um adulto!" mas o estalo nunca chegou. Então talvez, simplesmente seja assim para todo mundo. Meio que uma infância compartida. Quando começou o penúltimo semestre da faculdade de Letras decidi registrar as lembranças de infância dos colegas da sala de aula. Passe muito tempo falando comigo e certamente vai ouvir em algum momento "isso daria uma música". Pedi que ninguém assinasse o nome e administrei as memórias como quis, ou como pude, o que vem a dar no mesmo. Por essa mesma razão, mantive a música da forma como foi apresentada no sarau da faculdade. Há quem diga estar por demais melancólica mas... reflete minha visão da passagem.

P.S: Repetindo a experiência da letra anos depois, o texto dessa semana é, também, composto de retalhos de memória coletiva. Então deixo o agradecimento a todos que me auxiliaram na pesquisa.

Da Infância
Turma de Letras UniSant’Anna 2011

Em quadrinhos vivia (sim) podia colorir o céu
As tardes de domingo como um bolo de mel
Uma dezena de moedas e eu fazia fortuna
Antes, depois da escola só brincando na rua

Me lembro que o dia durava um ano
Ele hoje se esvai, era a liberdade!
Só agora eu sei...

Inocentes conversas com amigos e amigas
As cortinas abertas, sem conhecer perigo
E como um passe de mágica: Tinha o que precisava
Tanto zelo a minha volta, nada me preocupava

Me lembro dessa vida que seguia sem planos
E ficou para trás
Sei a felicidade é não deixar passar
Não vamos nos perder de nós, o que fomos nos somos
Sei a felicidade é não deixar se perder


Respostas que foram usadas como base para a letra de 2011

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um Caminho para o Céu

"(…) Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos.A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode." - Demian, Hermann Hesse



Um Caminho para o Céu (2007)

Estou a cair no profundo abismo
Do desentendimento
Onde as perguntas voltam vazias
E as respostas voltam cheias de perguntas

Sou vigiado por ladrões de informações
E por fracos que servem aos reis do submundo
Enquanto isso continuo a viajar
No submundo estou prestes a chegar

Correntes me aprisionam na passagem final
Correntes vivas, impiedosas. imorais
No paraíso é onde me querem
E perco a chance de estar no inferno

Pecarei no trem da piedade
E pagarei meus pecados com dinheiro
Descansarei em paz sem o doce ar poluído
E o som dos motosserras



         Quase sucumbi à tentação de usar uma frase de Jean-Baptiste Clamence, do romance, A Queda, de Camus. O título seria sugestivo no momento em que os versos da canção iniciam com "estou a cair". A composição de Lobão, de mesmo nome, viria a calhar com frases tais nada como um sorriso burro e paranoico para não perceber a velocidade da queda. Seu acústico MTV lançado em 2007 foi um dos fatores para que eu optasse por obter uma craviola. Digressões. Se a frase que permaneceu foi a de Hesse foi puramente por conta de sua obra Demian tratar, entre outros temas, do embate e contrastes entre o bem e o mal. Embora, devo admitir, quando travei contato com o manuscrito de Bruno Oliveira, a primeira coisa a me ocorrer foi como era distinta dos versos perdidos que possuíamos até então.
          O personagem da narrativa parece estar a margem, não ansiando por algo luminoso. Trata-se de um flash de uma história maior? Um vislumbre? O eu-lírico se jogou ou foi defenestrado por uma segunda força não mencionada? Ou muito me engano, ou havia um pequeno verso antes, ele comunicava o tempo em que a ação discorreria no decorrer do farfalhar das folhas de uma árvore. Ideia que acabou cortada, provavelmente para esse efeito súbito. Naquele momento, estavam novamente os três na garagem, no entanto, diferente do que ocorrera em Segredos em sussurros (http://goo.gl/2Q2P7o) Fabio não encontrava acordes que acomodassem a letra caótica. Depois de lê-la uma série de vezes cheguei a uma solução melódica que me agradou, numa inversão de papéis, o sr. Kulakauskas desenvolveu o dedilhado de acompanhamento. Cronologicamente, foi a primeira melodia que fiz em minha vida. Já ali, circular, como que não houvesse forma de escapar. Com a permissão de citar O Fantasma da Ópera, concluo que estava cruzando, naquele momento, um ponto sem retorno. Não havia como prever que, eventualmente, eu escreveria uma canção chamada Falsa Modéstia (https://goo.gl/ivsgW6), por exemplo.
           Partindo do momento em que a primeira melodia foi composta, os anos seguintes seriam dedicados a essa busca. Nomeei como "Um Caminho para o Céu" mais pensando nas ironias subentendidas no texto. O som das motosserras retornaria numa outra música, em 2011: Árvore da solidão. Autorreferência e circularidades sempre me cativaram. Uma curiosidade é que, Lenine, em seu álbum Chão, utiliza, literalmente, o som de motosserras na canção Envergo, mas não quebro.
        Certa vez, quando mostrei a letra, a resposta me pegou de surpresa: "É sobre corrupção, certo?"; Para mim, sempre tinha sido algo mais existencial, não deixava de fazer sentido. Não precisa ser sempre sobre a "grande corrupção", pode ser aquela que invade o cotidiano e vai se instalando como fosse seu lugar de direito. Hoje, ao tentar resolver uma situação qualquer no banco deparei com "respostas cheias de perguntas" numa burocracia, por vezes, ininteligível. Buscando pelos arquivos do ano de 2007 da Folha de São Paulo descubro que, no fim de setembro, houve uma paralisação dos bancários, seguida de ameaça de greve. Olhando para situação atual, parecem ecos. Estou exagerando? Naquele tempo isso não tivesse relação nenhuma. Creio a canção estava pronta meses antes de setembro, quando os envolvidos não se recordam, quem há para dizer? 
           Essa ode em nome da "pequena corrupção cotidiana" me surgiu quando, no horário de almoço, os colegas conversavam acerca de uma vez em que um funcionário recebeu, anos atrás, uma quantia exorbitante de horas extras em seu pagamento e, curiosamente, a retornou a empresa. Esse ato foi discriminado e zombado em seguida. Os risos aumentaram quando veio a informação de que o mesmo bom samaritano foi dispensado da empresa um ano depois de sua boa ação. Guardar o dinheiro de antemão seria o ato justo? Quem estivesse de passagem ali, poderia supor foi a conclusão daquele grupo. Em seguida, em frente à sede do jornal Diário de São Paulo, recebi o leve aceno do motorista de um ônibus de viagens, simplesmente por não ter atravessado a rua enquanto o sinal estava vermelho. A preferência ao pedestre não é absoluta, a ideia da sinalização semafórica é justamente controlar os deslocamentos! Fui, em seguida, surpreendido por uma viatura da polícia militar passando fugaz pelo corredor de ônibus da Av. Marquês de São Vicente. Não havia perseguição, congestionamento. Nada, enfim, que justificasse. De qualquer modo, sartreanamente, o inferno são os outros.