quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Falta alguém

"Nascemos com um prazo limitado para interpretar o mundo. Fazemos o que podemos. O legado de todos que nos precederam nesse esforço pode ajudar ou confundir, e em útima intâcia ninguém nunca prova nada. Atribuir um propósito superior a um lance qualquer da vida é construir uma ficção muito pessoal. Dar sentido ao mundo é um ato criativo. Uma visão de mundo é uma narrativa." - Daniel Galera, Cordilheira
         Prólogo
        A janela lateral, além de esparsas árvores, mostra as margens do rio. Automóveis, caminhões, motocicletas. Nem o rabecão tem pressa. Jornalistas e presidentes desconhecidos batizam os caminhos. Café se espalha num jardim, tudo é levado a ele pelos movimentos do dragão chinês na grande murada. O som em seus fones poderia ser mais alto: "Morfeu deitou, adormeceu e esqueceu de mim". Seria essa a origem de sua despedida mencionando os campos oníricos de Morfeu? A semana mal dormida tornava aquela a trilha sonora perfeita. Nem voltando para casa os olhos fechavam.




        Nem Tom Zé, tampouco Arnaldo Antunes. Perdera o prazo por duas vezes por falta de inspiração. Talvez, esta não fosse a palavra correta. Não soubera convencer seu violão a acompanhá-lo na empreitada. Ainda que misto de madeira e aço, tinha, também, seus caprichos. A 3ª edição do Prêmio Musique contaria com Dinho Ouro Preto do Capital Inicial. Sua proximidade com as obras da banda tornaram a ideia da participação algo entre o natural e um dever moral. Por anos nutria o desejo de obter um ebow, um arco eletrônico capaz de criar o timbre único que conhecera ouvindo Passageiro. Os ensaios da Falsa Modéstia precisavam de criatividade para suprir a falta de equipamentos tais pedais de efeito. Ele lembra da decepção ao adquirir um slide para tentar tornar o solo do cover de Fogo mais fluído. Aquela canção era certamente uma das responsáveis por seu deleite e apreço aos sóis menores.
        Conferiu a letra de Dinho e Alvin L:

Alguém

Alguém
que veja o infinito
Com o sol no olhar
Alguém
que seja um oceano
em que eu possa mergulhar
Não diga nada
Não faça nada
Não pense nada
Por enquanto
Só me espere
Até te encontrar

Alguém
que não faça sentido
E eu possa entender
Alguém
que ouça o que eu digo
E saiba responder
Fique sentada
Fique parada
Fique calada
Só me espere
Até te encontrar

Alguém que viva o presente
Alguém que saiba ver além
Alguém que nunca me abandone
E não me faça de refém

Não diga nada
Não faça nada
Não pense nada
Por enquanto
Só me espere
Até te encontrar

       Uma, duas, cinco. Perdeu, além dos registros, as contas das quase melodias que surgiram até os acordes se acomodarem na harmonia final. Dinho afirmara em uma entrevista ao Estadão que colocar uma letra no jornal para artistas desconhecidos musicarem era "como se jogar em precipício" pois poderia "aparecer de tudo". E essa curiosidade pelo desconhecido deveria ser uma das "melhores formas de compor". Qual era o pensamento dos fãs ante a possibilidade de gravarem com o ídolo? 2010. Não faziam muitos dias ele assistira a uma performance do Capital Inicial no primeiro festival SWU. Também pode conhecer a banda! 
      Curiosamente - ou não - o vídeo de sua participação fora enviado no dia 27 de Outubro. Esse dia marcava uma apresentação da Falsa Modéstia na IV Mostra Musical da E.E. Esli Garcia Diniz, em Arujá. A primeira compilação de canções tinha como objetivo este dia, que também ficou marcado por ser o dia em que seu amigo de longa data, Anderson Gonçalves, o havia apresentado a uma figura mítica que atenderia por "menina em sépia". No futuro.
      Este amigo, junto a Gabriel Sandrini (fã ardoroso de Capital) formava Os Venâncios e em meio a seus devaneios, teorias e causos publicaram um texto divulgando a participação de Thales Salgado no concurso. (Para os que amam fontes, o post pode ser conferido aqui: https://goo.gl/cOrhOc). Que outras formas de divulgação ele pode ter usado? Conversar com as amizades próximas pelo Msn Messenger, Orkut, ou Twitter? Não era a criatura mais sociável, sua memória o traía. Suas formas de disseminar o conteúdo, precárias. Foi tomado por apreensão quanto ao resultado. Era a primeira letra de um músico consagrado com a qual ele lidava. Teria Dinho ouvido ao menos um minuto de sua canção? Nunca saberia. Seu desempenho não fora expressivo e, além do mais, em virtude dos direitos autorais nada poderia fazer com a música. Seria, tão somente, o eterno símbolo de sua participação.

        Epílogo
       No ano seguinte, recebi uma mensagem de Anderson com versos. Uma palavra tematizando a falta. Não aquela dos amores românticos, também não era uma sensação depressiva, maligna. Era, por assim dizer, a falta em seu estado mais puro. A sensação de que ainda havia algo por sentir. Algo verdadeiro. Conversando com ele recentemente enquanto pensava no post, confidenciou que havia, então, uma necessidade de transcrever os pensamentos. Por vezes me parece que o único conselho que sei dar é "escreva, é um bom hábito". O que parece vazio. Em uma breve conversa com uma psicóloga fui apresentado ao conceito de falta como algo imaginário, nunca muito bem definido, com uma ideia ilusória de completude plena, perfeita. Uma das faltas que eu sentia em 2011 era mais concreta: havia uma melodia sem letra, despida da possibilidade de transmitir sentido. Calcei a letra de Anderson tal fosse uma luva. Era a chance de retrabalhar os sons e a canção que outrora se chamava Alguém, passou a chamar Falta. O mais interessante de lidar com palavras de outrem é enxergar quantas possibilidades existem nos pensamentos. Posso estar a me repetir, mas poder chegar a resultados que eu não alcançaria sozinho é uma das interessâncias da vida. A melodia tinha sentido. Tinha que concordar, um dia tudo volta para o seu lugar e vai ficar como devia estar.

Falta (2011)

Falta
A cor e o sabor,
As rimas e repetições
Falta 
Os olhos que brilhavam
Encantados de emoção

Refrão:
Talvez a falta não seja nada, ou seja, algo
Eu só sinto que faz falta tudo isso a faltar

Falta
O frio na barriga,
Falta aquele bem-estar
Falta 
A palavra escrita,
Um coração a palpitar

Refrão

Faltam os tempos de incerteza
Os de insatisfação também
Faltam os gritos de alegria
Ao saber que estamos bem. 

Página do moleskine mostrando os versos de Anderson e como ficaram configurados à canção.

       P.S: Caso haja a curiosidade de saber como era a canção que tomou parte no concurso ela pode ser acessada aqui: https://goo.gl/DbJsDj 

Nenhum comentário:

Postar um comentário