sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O Teatro Mágico

"O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou para esse fenômeno a designação de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multiplicidade dos egos subordinados. Esse erro da ciência acarreta conseqüências desagradáveis; sua única vantagem reside na simplificação do trabalho dos mestres e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em conseqüência desse erro, muitos homens que passam por ‘ ‘normais”, e até por valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da alma. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio eu que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jogo da vida." - Hermann Hesse, O Lobo da Estepe

Palhaços (1920), de José Gutiérrez Solana

        E quando uma série de amigos diziam e reiteravam: ouça O Teatro Mágico, meu "eu" do passado se manteve por algum tempo impassível. Um dos temas recorrentes em mim seria a resistência ao novo, ou mais, a vontade de se jogar ao tempo que tento manter raízes e convicções advindas de algures. Decidi seguir o caminho contrário. O que, a primeira vista, era encarado como um punhado de músicas alegres, apenas. Seria vivido até uma opinião surgisse. Simples assim. Aficionado que sou por Humberto Gessinger, não havia me passado em mente o versos da canção de 2003 Segunda-Feira Blues I Onde está o teatro mágico só para iniciados? Tampouco a relação entre a banda Steppenwolf - para mim sempre uma one-hit-wonder com sua Born to be Wild - e o autor alemão Hermann Hesse, pra ser sincero, nunca ouvira falar de Hesse até então.
        Fui surpreendido ao saber que Entrada para Raros era um álbum de 2003. Só ouvi falar da banda quatro ou cinco anos depois. É quase como Kulakauskas mantivesse canções desse período em seu repertório pessoal desde sempre. No meu caso, duas faixas se sobressaíam: Uma parte que não tinha e A Fé Solúvel, esta em especial fez com que me aproximasse da alma poética de Quintana em seu Poeminho do Contra: "Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho,/Eles passarão.../Eu passarinho!" Talvez por conta disso estas canções me acompanhavam quando carregava cidade afora um vaso de túlipas regadas a agua salgada. Talvez seja a ancoragem emocional, nunca cheguei a me conectar com o primeiro disco.
        Recém lançado em 2008, O Segundo Ato saltou a meus olhos a participação de Zeca Baleiro na faixa Xanéu nº5 (prima-irmã de Televisão dos Titãs, amante de Tv a Cabo de Otto) O ar era distinto do que eu imaginava encontrar, também não era difícil perceber que o titulo da canção não se referia ao perfume campeão de vendas da estilista francesa Coco Chanel. A trupe estava chegando à cidade e com ela lidando com toda sorte de problemas da vida contemporânea. Tentando entender a atmosfera de fascínio busquei assistir uma série de vídeos no YouTube enquanto me preparava psicologicamente para experimentar um show, afinal, o circo nunca teve um papel intenso em meu imaginário infantil repleto de obras nipônicas, então, mergulhar simplesmente na fantasia me parecia um passo maior que meus pés. Haviam faíscas surgindo aos poucos, quando, ao comprar uma escaleta, o primeiro reflexo foi tatear as notas de Cidadão de Papelão.
        A inadequação com a estética do primeiro disco me levou a embates ideológicos com a parcela de fãs que afirmava que o som era "só para raros", ao passo que, pelo que via, a ideia do idealizador do projeto, Fernando Anitelli era de que todo ser humano é raro em suas particularidades. A questão conceitual, o nome retirado de uma passagem do livro de Hesse me passava a ideia de que ali residia algum mistério maior. A fascinante inadequação de Harry Haller me levou também a adaptação do livro, conduzida por Fred Haines em 1974.  Não apenas isso, a outras obras tais Sidarta e Demian, nesta última, também pensei na poética d'O Teatro Mágico. Quando li A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo. Imediatamente lembrei do trecho presente em O Mérito e o Monstro: Pra dilatarmos a alma/temos que nos desfazer/Pra nos tornarmos imortais/A gente tem que aprender a morrer/Com aquilo que fomos/E com aquilo que somos nós.
         Anitelli encontrou na figura do palhaço a representação da pluralidade do ser. A falar disso, bastaria a citação de Hesse. Acaso minhas palavras não se sustentem tanto a obra de Hermann quanto a de Fernando permanecerão. A poesia prevalece! Também o ímpeto de falar en passant da minha relação com a obra desta banda.
          No ano de 2011, Fernando lançou seu primeiro álbum solo. Ali não se mostrava o palhaço trovador. Ao cair a maquiagem permaneceu o requinte poético. Quando ele tirou As Claves da Gaveta teve a possibilidade de reformular uma série de composições já conhecidos dos fãs em versão "voz & violão" que circulavam a grande rede por anos. Letras dignificadas em arranjos de ares sutis do jazz mais brasileiro, se assim se pode dizer. O receio de que a trupe desmantelaria feneceu com o surgimento d'A Sociedade do Espetáculo, agora disseminando o conceito de Guy Debord em meio a referências pop. Mesmo a capa tinha um quê de Sgt. Peppers. O fim da trilogia trazia de uma parceia com Leoni a uma composição baseada em sugestões dos fãs por meio do Twitter. Água mole em coração de pedra, o saldo parecia positivo: agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o Grande Irmão. Realmente apreciava O Teatro. Não todas as canções, mas a proposta de amplificar como num sarau o discurso humano de semear o amor. Havia versos, que ressoariam melhor num poema. "Essa heterointolerância-branca te faz refém", por exemplo, era incensada por diversas reviews sem que sua forte mensagem encontrasse as melhores cores. No entanto, apenas o fato de a mensagem lá estar, é louvável nesses dias de excessos em excesso.
          Correndo o risco de beirar o ficcional - considerando que descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais - cheguei à hipótese de que as engrenagens da transmutação do som da banda que tomaria parte nos álbuns seguintes tinham começado a se mover em 2010, quando a trupe recebeu a oportunidade de abrir um show de um dos heróis de Anitelli, Dave Matthews. Além de, ter a participação do saxofonista da DMB, Jeff Coffin na faixa Transição; "Se aprendermos a olhar para nossos sonhos, veremos quão perto estão", parafraseando o próprio Fernando antes de tocar Sonho de uma flauta numa versão elementar. Há quem diga que a introdução da faixa Quermesse, em Sociedade, ecoa Pantala Naga Pampa. Era exagero pensar que essas aproximações anunciavam o fim de um ciclo? Talvez. Se milagres acontecem quando a gente vai a luta, estar em contato com nossos ídolos pode ser transformador até em relação a nossas próprias criações. Divago. Fato é que, depois desse álbum não me deparei com nada que envolvesse O Teatro Mágico.
Pelo menos até visitar a exposição Picasso e a Modernidade Espanhola no CCBB de São Paulo. Quando me deparei com o quadro a ilustrar essa postagem enxerguei Anitelli num dos palhaços de Gutiérrez Solana. No melhor estilo místico acreditei ser um sinal para descobrir o que eu perdera. Descobri que em 2014 havia sido lançado O Grão do Corpo. Nome que me chamou atenção juntamente a sobriedade da capa. No som não se encontrava o violino ou o DJ. Não haviam vinhetas, uma faixa com um poema, uma instrumental calcada no piano e percussão. Soa o álbum mais urgente e ao mesmo tempo coeso. Um novo ato! E essa reformulação merecia ser vista ao vivo. Ainda que não tenha mencionado no terceiro parágrafo, fez parte de minha 'experiência social' pegar o pancake que eu usava para fazer as vezes de Coringa e me maquiar como um integrante da trupe. Além disso, completei meu estudo de caso vendo diversos shows, na Academia Brasileira de Circo, no Carioca Club e também na primeira edição do SWU, por exemplo. Cada qual com um humor distinto e algumas vezes a fazer companhia dos mesmos amigos e amigas que faziam a indicação do primeiro parágrafo. Agora, eram apenas dois, eu e minhas circunstâncias.
         Não resisti passar na Lojinha para comprar camisetas, canetas, um adesivo para o carro de meu pai, etc e tal. Usara minha camiseta d'O Segunto Ato até puir. Agora era a hora de um arco-íris no logo e da estampa de Partilha, amor à primeira audição. Nas prateleiras pequenos frascos coloridos saltavam aos olhos entre os souvenires. Não ousei perguntar o que seriam. Me peguei torcendo para ouvir todas as músicas do disco novo no show. Foi assim? Sem ter um diário tal memória me escapa, também não quero procurar resenhas do evento. Os motivos antitéticos estavam ali, "morrer de vontade de viver", "a vida anuncia que renuncia a morte". Como de praxe, as letras apresentavam muito material para se discorrer de maneira existencial. Ou era o momento que eu vivia? Fica a abertura ao diálogo. Você está aí? A menção a acontecimentos em O Sol e a Peneira era como sucessora espiritual de Amanhã...Será? Travar contato com a manifestação e indignação em meio à festividade de uma canção popular tem o caráter de internalizar a reflexão. Assim, quando Anitelli explana ao público presente no Citibank Hall que o líquido em exposição na loja era a "essência do Teatro Mágico" não pude deixar de sorrir. Quantos dos mais apegados ao lado lúdico sentiam sua preciosidade esmaecida? Incontáveis, o caráter coletivo e camaleônico da trupe sempre estivera em voga, a vontade de buscar uma nova característica caracterizava o trabalho de Anitelli e, consequentemente, de todos os que o cercavam, leia-se: banda, dançarinas, sua família. Só a mudança é permanente. 
          Por conhecer o álbum de 2014 apenas em 2015, qual não foi a surpresa ao tropeçar este ano, 2016, em Allehop. Enquanto buscava referências para discorrer o álbum Era domingo de Zeca Baleiro em junho fui tomado de surpresa com o quinto registro da banda , detentor de uma alegria contagiante. Duran Duran, Oingo Boingo, Tears for Fears, ouvir é quase como estar num especial temático dos anos 80 - trilha sonora perfeita para a leitura de Armada de Ernest Cline? ao mesmo tempo nada soa fora do lugar, não é necessariamente um revival. A faixa sete, Cada Caso, me parece Undisclosed Desires da Muse. Como não poderia deixar de ser, a bagagem cultural do ouvinte vai guia-lo quanto ao que poderá encontrar. Se o disco anterior era mais politizado, esse é mais leve. Apresenta, também, campo lírico para análise. Se considerar que o disco abre já com versos como "no fundo somos todos sós" em tom de constatação. As interações do "eu" na busca de entendimento e de uma posição no mundo perpassam as letras. Frases de longa data no universo de Anitelli como "os opostos se distraem, os dispostos se atraem" se expandem na letra de Quando se distrai. Há mais de dez anos Anitelli dizia "eu não sei na verdade quem eu sou", hoje afirma que é "tudo o que faz para ser". Ainda que pareça despolitizado, o álbum soa coeso com a proposta de reinvenção. A última faixa fazer parte do "baú de Anitelli" (Num chat para o UOL em 2007 o compositor confirma a música já existia nove anos antes, o que data meados de 1998) também não parece gratuito. É quase como acenar, mais uma vez, para o passado, enquanto se permite pintar o futuro. Quase todos os registros, sejam cd's ou dvd's, d'O Teatro Mágico apresentam novas fantasias para antigos sonhos guardados. Existe, claramente, uma busca por explorar o potencial de cada uma das claves escondidas. Me identifico com essa incessante procura. Quanta bagagem cultural obtive simplesmente por querer me posicionar contrário a quem me pedia que ouvisse a banda? Hoje, sou eu quem indica: a vida convida pra se viver!!!

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