quarta-feira, 31 de maio de 2017

O Guarda-chuva

       

 
"F
azia pouco tempo que eu voltara d'A Princesinha do Atlântico, Macaé - RJ. Uma viagem acompanhando meu irmão com o intuito de conhecer uma igreja acabou por propiciar o inicio de um namoro com uma moça local,  direta e liberal, mal nos conhecemos e estávamos enlaçados. Há quanto eu deixara de ser o rapaz tímido em uma mesa de amigos em uma viagem ao Paraná? Nem mesmo notara quão simples me era para pedir uma garota em namoro. Tempo se não perde. A família dela? Sem problemas, ela afirmou eu poderia levá-la à sua casa enquanto seus pais e irmãos conversavam na saída da igreja.Voltei com a promessa de manter este relacionamento através de cartas, seria algo firme e concreto. Depois dos vinte e cinco anos há pouco espaço para incertezas.
                Ao menos, era o meu pensamento naquele instante. A chegada em São Paulo me propiciou uma leveza ímpar. Por mais prazer eu tenha em passear por outras paisagens fazendo novas amizades. Como o lar, não há lugar. Ainda que você sinta a sua pátria como o mundo, suas raízes sempre estarão mais firmes n'algum lugar. Para mim, esta é São Paulo. Enquanto famosa por sua garoa, foram sempre suas chuvas torrenciais a me fascinar. Chuvas, presente de Deus. A mim, não cabe delimitar os limites de sua previdência, pois que não os há. Foi na casa Dele, noticiei uma presença diferente, e antes de poder controlar. Estava com os olhos magnetizados na saxofonista da banda. Cabelos longos, uma beleza natural. Sem maquiagem, sem disfarces, e me convencendo cada vez mais de que era uma moça ideal. O tempo que passei a observando foi um curto infinito. Congregávamos na mesma igreja, e por isso, ainda que estivéssemos distantes, estávamos próximos. A observei mesmo enquanto meus irmãos e amigos cumprimentavam-me antes de sairmos da igreja. A saxofonista estava acompanhada de, creio, suas três irmãs. Eu a via, e a sensação só seria mais perfeita se a pudesse ter para uma conversa. Coloquei-me a pensar a aproximação.
                Dias depois estava eu, naquela época nem mesmo possuía carro, em meio a uma tormenta, meu protetor era um guarda-chuva. E aí lhe digo: era um guarda-chuva masculino banal, sem floreios ou borrões, sem pétalas ou detalhes. Deixei-o ao lado do grande portal da igreja e entrei para o louvor como acontecia toda a semana. Lembrei-me da promessa de Deus de nunca mais inundar a Terra e censurei-me por tê-lo pensado, afinal, a chuva era forte mas não equiparava-se a um dilúvio. Quando o culto acabou, a chuva não cessara, seriam necessários poucos quilômetros até a minha casa. Noto, o desaparecimento de meu guarda-chuva. Será mesmo, nem na casa do Senhor estava livre de sofrer pequenos furtos? Era um guarda-chuva banal, mas me pertencia. Uma mulher não o confundiria com uma sombrinha rosa. Fui ao encontro do pastor. E lhe comuniquei minha indignação com o caso, ele, muito compreensivo, apaziguou-me e afirmou a disponibilidade de um irmão levar-me até minha casa. Anunciaria, então, no culto da semana seguinte o desaparecimento de meu pertence, com isso, voltei para casa um tanto mais tranquilo.
                Semana seguinte, já mais tranquilo, compareci a igreja. A chuva, tal qual meu objeto na semana anterior, desaparecera. O pastor informou ter feito o comunicado um pouco antes de minha chegada e ao final do culto, eu esperava a manifestação da alma caridosa. E - acreditem vocês ou não - a pessoa que se dirigiu a mim não era senão a saxofonista. Explicou-me o engano que ocorrera: suas irmãs pensaram que  guarda-chuva era de um de seus irmãos, então pegaram-no sem ao menos confirmar. Pediu desculpas pelo infortúnio. "Infortúnio nenhum", respondi polidamente, afinal, o erro de suas irmãs fez com que ela precisasse se aproximar de mim. Não comuniquei a ela, estes pensamentos, eles eram meus e a surpresa daquele contato me deixou muito contente. "O problema" prosseguiu ela "É que como não choveu hoje, não trouxemos seu guarda-chuva, o que faremos?" repliquei não haver problema em pega-lo depois. E se chovesse depois? como eu faria para me locomover? Essas perguntas que eu fazia para mim mesmo enquanto conversávamos foi respondida por ela no instante em que propôs que eu a acompanha-se até sua casa para reaver meu guarda-chuva por garantia. "Claro". Prosseguimos conversando amenidades. O fato de haver possibilidade de conhecer sua família adiantar-me-ia as coisas. Em sua casa, recuperei meu guarda-chuva - que honestamente, deixa de ter importância a partir deste ponto. Ele cumprira sua função e esta foi a razão de eu tê-lo colocado em tão grande estima no título desta pequena, mas importante memória - e passei a conversar um pouco mais com a saxofonista. A proximidade me acalentava. As irmãs dela, nos observavam de soslaio entre risinhos divertidos, elas já haviam notado meu interesse.
                Exagero não seria se eu dissesse que a partir deste momento, parte do meu foco residiu neste passado regido pelo guarda-chuva e a outra parte imaginando o próximo encontro. Aconselho: escolha uma namorada da igreja, moça recatada, séria. De família. É muito difícil errar. Não é o seu caso? Se sua namorada foi da igreja e atendia a estes pré-requisitos e tudo deu errado eram possibilidades também. Regras inexistem neste caso. Importante é sentir fazer sentido. Vale para vocês também, mulheres. Encontram-se bons rapazes na igreja, se sua mãe a força em um relacionamento e não dá certo também é da vida: coisas e causos.  Lembra-me de continuar o meu! A saxofonista me quase escapava na saída do culto da semana. Sem tanto pudor segure-lhe pelo braço, suas irmãs cúmplices de meu pensar apressaram o passo para propiciar um momento a sós.  "Estou gostando de você e adoraria tê-la como namorada", não foram essas as palavras que eu dissera naquela hora. Quero apenas registrar que foi direto. Tão direto quanto alguém respeitosamente poderia ser. Como seria? "Você terá que falar com meu pai, se ele aceitar..." Costumes carregados até o fim dos anos oitenta. Se você estiver a ler estas palavras nos anos dois mil provavelmente achará esquisito. "permissão dos pais". Eu não achei e prossegui com ela até sua casa para resolver o caso o mais rápido possível. Os bigodes de meu futuro sogro me lembraram por alguns instantes um coronel em uma novela de época. Poderia ser também a autoridade daquela figura. Para este relato, importa a pronta aceitação da parte dele, desde que seguíssemos algumas regras, a saber: estaríamos sempre sendo observados. Poderia conversar com sua filha no portão até as 22h pois que ela trabalhava. Ele delimitou também alguns dias específicos para estes encontros. Aceitei a tudo sem muito alarde, não convinha desagradar ao pai naquele instante, tampouco nos próximos! Prosseguíamos em obediência.
                Tão logo estávamos prestes a iniciar o namoro de forma séria, confidenciei à garota uma situação que até então eu esquecera: minha namorada em Macaé! Rapaz! Ou moça a ler este relato. Naquele instante não soube se aquele olhar era de raiva, de riso ou misto. Poderia também ser de alguma emoção não catalogada. Teria ela pensado na canção de Luiz Ayrão "Se ele faz com ela vai fazer comigo?" Era apenas surpresa? Ouvi um contrariado "Você também, viu?" Sem pestanejar corri à cidade maravilhosa para fechar as pontas. "Mas, o que houve?", "Qual o motivo?", expliquei a situação rápida e detalhadamente - se há maneira de fazê-lo encontrei - a carioca compreendeu tudo. Não fosse o caso eu nada poderia fazer. A volta para São Paulo significava poder viver por perto da saxofonista. De que mais eu precisaria?

                                                                   FIM

P.S: À vocês, tradicionalistas que desaceitariam o fim da história com minha volta - aos que aceitaram a falibilidade da vida e das narrativas afirmo: tome o fim como definitivo e esqueça ter começado a ler este adendo -  relatarei os acontecimentos ocorridos depois de meu reencontro com minha querida saxofonista:
A obediência cega ao pai dela prosseguiu e com o passar, quem não apreciou muito estas regras foram os meus pais. "Onde já se viu um homem com mais de vinte e cinco anos precisar ser pajeado? É muito século passado isso, você é um rapaz honesto filho, e a filha dele também já é maior de idade" Entre outras, ouvi frases como esta. Certos, meus pais estavam. Tanto que até mesmo minha namorada concordou com eles. É coisa dos melhores romances, uma rivalidade entre famílias, pequenas exaltações. Os pais dela desgostaram esta atitude. Quando se é superprotetor, enlaça-se aos filhos de tal maneira! Depois de vinte anos é difícil uma separação pacífica. Vinte. Estou falando há uns vinte minutos não? Certo, prosseguirei"

                                                        ***

Oh ironias! Anos depois, a carta que conservara a narrativa estava incompleta. Houve tempo em que semelhante relato despertaria em mim a crença no amor. Tal engano com o guarda-chuva era parte de um plano superior, quase uma prova da existência de Deus, onipotente em seus desígnios a reunir os filhos perdidos para fins maiores que a procriação. Seria a anulação de Schopenhauer suas colocações acerca do amor? falácias, talvez até adquirissem um valor cômico para o grande filósofo no pós-morte em que caminha ao lado de Goethe e Hemingway. Não seria hoje. Quando parti pela cidade a indagar que acontecera com o narrador da história sou surpreendido com a informação de que fora preso por assediar mulheres. Mencionaram algo acerca do artigo 216-A, eu já não estava a prestar atenção, todavia. Lembrei-me de quando este homem pedira para eu redigir sua história que seria um presente para a esposa, um brinde pela longevidade da relação. Encontrei até mesmo o endereço dela em um diário antigo. Alegrei-me por nunca ter remetido o texto à tal saxofonista. Me não tornei cúmplice, criador de álibis para fidelidades imaginárias.

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