sexta-feira, 29 de setembro de 2017

mãe! (ou O Princípio da Incerteza)

"Como espécie nossas pegadas são perigosamente insustentáveis e mesmo assim nós vivemos em estado de negação quanto a situação de nosso planeta e nosso lugar nele. Dessa sopa primordial de angústia e desamparo, acordei numa manhã e esse filme se derramou de mim como um sonho febril. Gestei todos os meus filmes anteriores por muitos anos mas escrevi o primeiro rascunho de mãe! em cinco dias. Dentro de um ano já operávamos as câmeras. E agora, dois anos depois, é uma honra poder retornar ao Lido para a estreia mundial. Imagino que as pessoas podem questionar o motivo de o filme carregar uma visão tão sombria. Hubert Selby Jr, o autor de Réquiem Para um Sonho, me ensinou que é encarando nossas partes mais sombrias que podemos encontrar a luz." Trecho de declaração de Darren Aronofsky em agosto de 2017



O Princípio da Incerteza (2017)

Talvez dizer
Mais do que devo
Pra não calar
Um sentimento
Que me vem
A cada estação

Pode ser perdição
Mas que venha a mim
Gritarei um trovão
Para que nasças
A resposta

Azaléas perfumam tragédias
Incertezas em cifras perdidas
Se apresenta
“Ponto sem retorno”
(Será?)

“Sou o Mal”
Esse é meu segredo
E você viu...

            
         Uma semana depois o filme ainda ressoa. As discussões seguem e, parafraseando meu capitão acho que é hora de contribuir com um verso:
      Meu desconforto com o filme não surgiu pela ausência de trilha sonora. Havia expectativa, sim, por um provável trabalho do compositor Clint Mansell, colaborador recorrente. Uma casa afastada favorece os silêncios e sons naturais, então optar pelo orgânico cria ótimo resultado. O desconforto poderia vir ao descobrir a mentira do primeiros visitantes, um doutor e sua esposa: eles estavam ali por Ele, e sua obra o tempo todo. Há uma estranheza. O fratricídio? um apocalipse beirando o absurdo? Não. A distância da guerra nos anestesia!
     
O desconforto vem da emoção sentida pela mãe na leitura do poema d'Ele. Descobrindo um conjunto inédito de palavras num instante íntimo. A mãe o ama e Ele, por certo se inspirou nela para recontar a história de ambos. 
      Nesse momento a narrativa se desdobra ao mostrar e expandir um conceito mencionado antes: o filme abre com uma mulher em meio as chamas, íris de divinos olhos. Algum tempo depois Ele conta sua história ao doutor: houve um incêndio e apenas uma jóia surgiu das cinzas. Sua esposa, a mãe do título, se  dispôs a reconstruir todo o espaço sozinha, criando um Paraíso. O que o poema diz? Nunca saberemos. É como na canção de Bill Callahan Eid Ma Clack Shaw em que um poeta sonha com a canção perfeita em que residem todas as respostas. Ele acorda, escreve, e na manhã seguinte lê e não consegue compreender.
           A questão é simples. Aquele momento terno e íntimo entre esposo e esposa, o poeta e a musa, era uma ilusão. Vemos a esposa cair em si: se Ele já mostrou o texto à editora, a quem mais mostrou? Para ela havia um acordo entre os dois, a entrega e dedicação não deveriam ter como compensação conhecer em primeira mão os textos do marido? Não. Ela fora apenas um meio para o fim. O que me incomodou ao ver foi o receio de ter saído à imagem e semelhança d'Ele. Essa quebra de confiança, da busca ególatra pela atenção da quantidade em detrimento da qualidade é o que define o poeta presente no filme. De forma romântica, o filme mostra que sua inspiração surge da destruição e do caos. É nessa renovação que bombeiam suas veias artísticas. Cego pela incessante busca de sua magnum ópus o poeta fará de tudo.
           O desconforto, os receios, os pensamentos de sua esposa são negligenciados cada vez mais... Há sensação pior do que se sentir uma estranha em sua própria casa? Não se sentir segura em sua própria casa? O poeta está sempre de passagem, inventa viagem e retorna brevemente. Diz que ficará ali, até o momento seguinte quando surge algo mais importante. Ele precisa do amor dela por uma conveniência criativa, ama ser amado e seu retorno a esse amor são esparsas migalhas de atenção. Ela o acolhe, e ele, escorregadio. Viverá resoluto de que, em sua arte, ele é intocável e superior. Quando sua esposa já não puder oferecer mais nada ele pedirá mais: a devastação da vida como declaração de amor.

E encontrará outra musa.

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