quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

MITO: O NADA QUE É TUDO

Um embate entre o monstro mítico de Mensagem e o de Os Lusíadas
(Originalmente um trabalho apresentado como parte do Curso de Letras do Centro Universitário Sant’anna na área de Literatura Portuguesa. Junho de 2011)





Pessoa, um mito à altura do mito Camões?
Nacionalistas ao extremo? Poder-se-ia dizer. O certo é que tanto Luís de Camões quanto Fernando Pessoa construíram, cada um à sua maneira e época, uma obra exaltando os valores do povo português. Suas angústias, expectativas, conquistas e mais ainda sua coragem para sobreviver aos perigos de "mares nunca antes navegados" afim de aumentar territórios, aumentar riquezas e glorificar a terra natal: Portugal. 
Camões em Os Lusíadas descreveu em dez cantos e 1102 estrofes decassílabas a viagem de vasco da Gama em busca do caminho para as Índias e pelo Ocidente. Há três ‘mitos base’ que são Adamastor, Velho do Restelo e A ilha dos amores. O mito que será utilizado nesta monografia é o de Adamastor. 
A Obra mensagem de Fernando Pessoa em questão “Mensagem” possui três partes: Brasão, Mar Português, e O Encoberto. Distribuídos em 44 poemas. A primeira e terceira parte apresentam subdivisões e a segunda parte não. O poema “O mostrengo” que será utilizado nesta monografia, faz parte da segunda parte do livro. 
O que se busca neste trabalho é analisar as semelhanças e diferenças entre as partes em questão: Adamastor é um gigante que encontra-se com a tripulação de Vasco da Gama quando estão no Cabo das Tormentas. O mostrengo é uma criatura que lembra um morcego e se coloca a assolar a tripulação de uma navegação portuguesa no mesmo Cabo das Tormentas. 
Essa é uma intertextualidade sempre citada, ao falar sobre as duas obras. Qual das duas criaturas configura-se como o monstro máximo? Seriam mesmo totalmente malignas? Estas são algumas das questões que serão levantadas nesta monografia. 

Prólogo 
Como se portar quando seu inimigo mostra-se "monstruosamente irascível"? Quando é imenso e parece gritar que é a própria "Natureza" que o quer amedrontar e a qualquer instante lhe pode levar para as profundezas sem lume?.. Camões representa através de Adamastor estes dilemas e Fernando Pessoa se vale do 'mostrengo'. 
N'Os Lusíadas, Camões, apresenta Adamastor no Canto V, quando Vasco da Gama põe-se a narrar a viagem empreendida de Lisboa até o rei de Melinde, no canal de Moçambique. O mostrengo, por sua vez, se apresenta em "Mar Português" segunda parte da obra Mensagem, de Fernando Pessoa. 

Um monstro em dois momentos ou diversas interpretações para um mesmo mar? 
Partamos de um ponto de semelhança em palavras empregadas na descrição das figuras em questão. 
Adamastor é descrito em determinado momento como "horrendo e grosso": "Com tom de voz nos fala, horrendo e grosso/ Que pareceu sair do mar profundo" enquanto o mostrengo tem as palavras "imundo e grosso" constituindo parte de sua adjetivação: "Três vezes rodou imundo e grosso". Embora uma das entidades seja horrenda e a outra imunda, há uma relação pois as palavras remetem a um campo de idéias comum, sugerindo algo repulsivo, pavoroso, ou mesmo monstruoso. A utilização da palavra "grosso" por Pessoa constitui um traço de intertextualidade consciente com o texto de Camões. 
Quanto a forma com que são caracterizados singularmente: Adamastor é uma figura de tamanho descomunal, com boca negra, dentes amarelos, barba maltratada. O tom de sua voz é profundo e causa o arrepio de todos os tripulantes : "Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/ Que pareceu sair do mar profundo/ Arrepiam-se as carnes e o cabelo, / A mi[m] e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo. 
O mostrengo é uma figura que voa e chia e diz habitar em "cavernas que não desvendo" seus "tetos negros de fim do mundo". A semelhança que este carrega com um morcego não é gratuita. Na versão original, "Mar Portuguez" - que Pessoa publicou em Outubro de 1922, no nº 4 da revista Contemporânea - o poema se intitulava "O Morcego". Animal este, que simboliza a natureza proibida da noite. A palavra 'mostrengo' adotada posteriormente pode causar estranheza. É palavra derivada por sufixação: monstro + sufixo -engo de conotação pejorativa. Há ainda a supressão do 'n' de "mons" ficando apenas "mos", que ao compararmos com "morcego" notamos ser a alteração para a consoante subsequente na ultima consoante da silaba "mor", formando "mos". 

Três parágrafos acerca do três 
Nota-se na construção do poema de Fernando Pessoa o recorrente número três: a palavra "mostrengo" possui três silabas, o poema tem três estrofes, cada uma delas possui nove versos (o número nove é múltiplo de três). O número também é trabalhado de forma a criar ainda mais mistério em volta das ações do mostrengo. 
Lemos no poema: "voou três vezes a roda da nau", "voou três vezes a chiar", "rodou três vezes", "Três vezes rodou imundo e grosso". O três não está apenas nas ações do mostrengo. Mostra-se também nas ações do 'homem do leme' : "Três vezes do leme as mãos ergueu", "Três vezes ao leme as repreendeu", "E disse ao fim de tremer três vezes". No último verso de cada estrofe há a menção a El-rei D.João Segundo, o que faz com que , também ele, seja referido três vezes. 
O número três carrega força mística tal, que por si só poderia ser objeto de estudo em relação ao que pode significar no poema. Há a tríade de deuses egípcios Osíris, Hórus e Isis. A santíssima trindade, a ordem espiritual composta de Deus, o Universo e o Homem etc. O número três também pode simbolizar a perfeição, a totalidade. A presença deste número no poema pode sugerir a influência de Deus nas ações do homem. Decidido isso, podemos focar na comparação entre os monstros. 


De como as criaturas lidam com indesejados viajantes 
Camões optou por criar uma figura flexível. Adamastor, a principio, é uma figura completamente assustadora. Anuncia como tem lidado com todos aqueles que tentaram passar, valendo-se de ventos e tormentas desmedidas num castigo que vem sem que se aguarde. Este tom toma maiores proporções quando em determinado momento ele diz: "Antes, em vossas naus vereis, cada ano,/Se é verdade o que o meu juízo alcança/ Náufragos, perdições de toda sorte,/Que o menor mal de todos seja a morte!" Quais destinos de imensuráveis sofrimentos seriam estes maiores que a morte? Ainda que apresente tais perigos a figura de Adamastor é humanizada ao fim da passagem. Quando o monstro se mostra atormentado por um fracasso amoroso, logo, o que o motiva capaz de criar empatia para os navegantes, e consequentemente para o leitor. 
A abordagem de Pessoa para o mostrengo é única: aterrorizar os navegantes através de seu vôo ao redor da nau, seus chiados e sua própria figura. O mostrengo é fruto de um mistério: nada se explica acerca de sua vida pregressa. Ele percebe os intrusos em seu território e se coloca a tentar afugentar os navegantes. Sua abordagem tem - como a de Adamastor - efeito instantâneo, percebemos já no oitavo verso da primeira estrofe que o 'homem do leme' está a tremer no instante em que responde a criatura. Apenas a coragem dos heróis pode vencer este desafio. Sem ela, o mostrengo reinaria absoluto por aquelas áreas. Ele só pode ser vencido. Não é capaz de mudar de idéia. 


Navegando o Cabo a dentro e através 
Mais que a simples representação do Cabo das Tormentas, o Adamastor e o mostrengo podem ser interpretados como a personificação de todos os medos que os navegantes mostravam quando se punham a desbravar os mares. Sempre se soube das lendas que eram criadas pelos navegantes na tentativa de compreender quais eram os perigos dos mares e tormentas. Estes monstros fantásticos representavam um perigo palpável. O que poderia causar tantas mortes se não uma terrível criatura à espreita? Preparada para levar os homens e seus sonhos para as fossas abissais? 
As criaturas se vistas como protetoras de um caminho e apresentando um desafio ao povo português tem um papel semelhante ao desempenhado pela Esfinge Egípcia que devora os que não tem coragem, ou não estão a altura de seu enigma. As duas figuras, Adamastor e mostrengo, colocam-se contra os navegantes e apenas a coragem e a ousadia podem servir como resposta ao terror que representam. 
Vendo sob uma outra ótica, para os navegantes era primordial atender a vontade do rei, este sim, detentor de uma fúria maior que a de qualquer monstro encontrado no mar. Por isso pode ser interpretada como uma ironia o fato de a coragem de enfrentar um medo venha de um outro medo. Dizer que para um rei os fins justificam os meios é útil a esta altura? 
D.João II alterou o nome do Cabo das Tormentas para Cabo da Boa Esperança depois que Bartolomeu Dias e sua tripulação conseguiram ir além do Cabo. Essa façanha é a presente no poema "O Mostrengo". Quando, depois, Vasco da Gama no reinado de D.Manuel I, encontrou o caminho para a Índia indo além do Cabo, Luís de Camões homenageou este heróico ato n'Os Lusíadas. 


Um navegar impreciso entre dois mares do tempo 
Houve a possibilidade de observar a intertextualidade entre o poema "O Mostrengo" de Fernando Pessoa e o Adamastor presente em Os Lusíadas de Luís de Camões. Podemos concluir que foi pela existência de Adamastor que o mostrengo pode tomar vida. Uma vez que Pessoa, tendo podido buscar inspiração em seu compatriota, diluiu a influência da antiguidade clássica - fortemente presente no texto de Camões, por exemplo o próprio Adamastor baseado em um gigante mitológico - e fortifica a sua visão interior dos perigos do mar, no Cabo da Boa Esperança. 
Camões criou um personagem que aterroriza por suas proporções, mas o descreve como uma figura humana. Além disso, a força épica que Adamastor inspira vai sendo reduzida quanto mais o ser vai sendo humanizado no decorrer do episódio. Adamastor fora vencido pelo amor. Essa reviravolta acaba transitando o foco entre os conflitos do gigante e os dos navegantes. 
O poema que apresenta o mostrengo, por sua vez, tem uma reviravolta apenas no instante em que o 'homem do leme' se percebe como a confluência de energias e almas do povo português e da vontade do rei D.João II e toma em suas mãos o destino que parecia estar, até então, nos dominios do mostrengo. Nas duas primeiras estrofes, tudo que o homem é capaz de fazer é tremer e temer. O nome do rei é tudo o que consegue articular. É apenas na terceira estrofe que o poder da coragem, necessário para sobrepujar a criatura horrenda, se manifesta. Como fosse uma epifânia. É a vitória do homem sobre seus medos. A luz que oblitera as sombras. A força de Portugal é tanta, que até mesmo detentor de uma verve poética o homem do leme se mostra. 
Enfim, a emoção do episódio de Camões divide-se entre os homens e Adamastor, enquanto no poema de Pessoa o foco mantém-se no fortalecimento do espirito do homem. 

O supra-Camões 
Essa força colocada por Pessoa torna a sua criatura e a ação que a envolve mais interessante, e assim mostrando aspectos do "Supra-Camões", pois elevou ainda mais os valores e ideias que Camões propusera n'Os Lusíadas. Fernando Pessoa criou no mostrengo um símbolo máximo para o medo. Mais que uma geniosa personificação como fizera Camões. 
Encerro com uma citação que resume esta ideia de forma mais articulada, e considerando aspectos gerais das duas obras: 

"A Mensagem comparada com Os Lusíadas é um passo a frente. Enquanto Camões, em Os Lusíadas, conseguiu fazer a síntese entre o mundo pagão e o mundo cristão, Pessoa na Mensagem conseguiu ir mais longe estabelecendo uma harmonia total, perfeita, entre o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo esotérico." (Cirurgião; 1990, 19) 


Referências 

MOISES, Carlos Felipe. Mensagem de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2ª edição 

CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Comentário por Francisco da Silveira Bueno. Rio de Janeiro: Ediouro. 

CIRURGIÃO. Antônio. O Olhar Esfíngico da Mensagem de Pessoa. Revista 

ICALP, vol. 22 e 23, Dezembro de 1990 / Março de 1991, 74-85 

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