domingo, 26 de fevereiro de 2017

Brinquedos de Guerra


"Sweet melodies
Cross an ancient battlefield
Soaring still and claim memories
Say a short goodbye, a short goodbye now, a short goodbye now", Oren Lavie





Brinquedos de Guerra (2011)

Palavras são brinquedos de guerra
Da minha, e também da sua
Uma guerra longe das ruas

Meu silêncio
Na espera de tua voz
Que em algo me cura
E seria sua candura
Ou minha loucura?

Enquanto se transforma em animais
Passo a imaginar os tais
Penso se ao encarar o desconhecido
Estou a perigo

E se a palavra
Por mim proferida
É igual a que é por
Ti recebida
Com a força para
Te deixar vencida
Ou ferida

Eu desmetaforizado,
Despido de estilo,
Nem tão seguro,
Nem tão perdido
Vislumbro teu nome
E sigo

         Não fosse um compromisso com canções autorais, eu poderia escrever algo sobre alguma canção do israelense Oren Lavie. Fui apresentado a ele há sete anos atrás e ouço mitos de um segundo cd ao menos desde dois mil e doze. Numa das conversas com B.S.B. ela surgiu com essa definição "palavras são brinquedos de guerra". Revirando os e-mails encontrei um do dia 03/01/2011 em que eu dizia Demorei pra caramba pra conseguir musicare no final usei outra melodia e tive que mudar uma ou outra coisa na letra foi minha última composição de 2010, inaugurando o sexto cd =D. Fora do registro não consigo imaginar como soava essa melodia. Admito o jogo: para que a listagem de demos mantivesse uma coesão anual transformei a canção em cria do ano seguinte. Por meu amor pelos acordes diminutos, ela fez parte de meu repertório em um festival cultural de Arujá:

Fatos, não palavras.
          A águia era como minha amiga se via, portanto, foi como meu desenho escorreu. Eu tinha a mania de fazer retratos. Fotografava e então dava no melhor estilo Pop Zen (só é seu aquilo que você dá). Com esse desenho não foi assim, ele ficou perdido numa pasta junto a uma cópia de estudo da Preocupação Materna Primária de Winnicott. Foi uma troca? Ela ficou com meu exemplar de Quando Fui Outro - presente de uma professora da faculdade - Bianca leu? Quem sabe ela estivesse personificando os ensinamentos de Rumpelstiltskin: toda magia vem com um preço. Sim! para que eu ficasse com a composição que partiu das palavras dela, eu não poderia ter o livro. A última vez em que a vi foi há exatos mil cento e oitenta e cinco dias, en passant, num tributo a Cazuza no Parque da Juventude. E eu nem gosto de Cazuza! que estava fazendo lá?

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Nossos Sonhos a Caminho (Vanguart Acoustic Night)

Tenho só um coração
Canto a mesma canção
Vivo uma velha ilusão
Ando pelas ruas esperando
Que venha alguma louca
Mais louca ainda que eu
Alguém como eu...  

Mi Vida Eres Tu


Foto: Fabiana Nascimento
         Alguns textos parecem não ter um início definido, o dessa semana se encaixa nessa descrição: "Ah! O Fã Clube Sindicato Vanguart! " ou então "Gratidão!" foram as frases que mais rondaram o pensamento para esse parágrafo. Decidi então usar colocar as duas e seguir em frente. Último dia de janeiro. Um par de ingressos para uma sugestão para o nome do novo álbum - cada vez mais esperado, diga-se de passagem. Da melhor maneira que pude, acessei a página sem olhar nenhuma das propostas dos outros fãs, como se a pressão não existisse desconhecendo as ideias dos outros corações e mentes participantes. Dias depois, quando saiu o resultado, fui tomado de surpresa de que ganhara, este é um fato indissociável dessa apresentação, afinal, não imaginava poder estar lá. Quando chegamos ao Estúdio, não tínhamos dúvida de que nossa primeira ação seria nos dirigir à lojinha oficial em que fomos muito bem recebidos por Cláudia Almeida e Thais Dias. No dia seguinte, a página do fã clube no Facebook falou da história então a reproduzirei na íntegra:


Fã Clube Sindicato Vanguart
11 February at 13:21
"Gente, olha que demais essa história. O Thales foi o vencedor da promoção que fizemos aqui no sindicato pra ganhar um par de ingressos do show de ontem em SP. A Fabiana ficou em segundo lugar na promoção e acabou ficando sem ingresso, pois só tínhamos 1 par mesmo. Mas quando saiu o resultado da promoção, a Fabiana fez um comentário na postagem parabenizando o Thales. Thales respondeu. Aí comentamos que a sugestão dela tinha sido muito boa também e que ela tinha ficado em segundo lugar. Enfim, depois da troca de alguns comentários, o Thales teve a sensibilidade e a gentileza de convidar a Fabiana para ir com ele ao show já que ele tinha ganhado 2 ingressos. Não é demais?!?! Os fãs do Vanguart são muito especiais mesmo. Eles curtiram o Show e passaram pra falar com a gente na lojinha. Valeu queridos. Adoramos conhecer vocês dois e essa história inspiradora. Vida longa próspera pra essa amizade. Viva Vanguart."

Foto: Claudia Almeida

Vanguart Acoustic Night


"Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu os romantizo." Novalis, Polén, Fragmento nº 105

Nota do editor: Na transcrição os nomes de Hélio Flanders, Reginaldo Lincoln, David Dafré e Fernanda Kostchak serão referidos como: HF, RL, DD e FK, respectivamente.


HF: Muita gente no trânsito vindo, a gente segurou um pouquinho. Obrigado pela paciência.
RL: Obrigado por terem vindo!
HF: E... para os atrasos nós temos uma velha canção.
Demorou pra Ser
         Há aquelas perguntas que vem e vão como: com quanta antecedência a banda define o repertório? Por conta do pequeno atraso decidiram que a canção abriria o show ou foi uma feliz coincidência?
HF: Que bonito, que silêncio. Vou a muitos shows de rock desde os onze anos de idade. Obrigado pelo respeito, vocês sabiam cantar essa?
RL: Eles cantaram!
HF: Devo estar com o fone muito para dentro aqui.
RL: Por mim podem cantar até mais alto ainda.
...Das Lágrimas
         Vem sempre a mente o "que trouxe você pra mim". Há o conforto do estúdio, claro, mas algumas palavras que se espera são encontradas apenas em meio ao calor da proximidade, veja shows de uma banda o bastante e as versões ao vivo sempre ecoarão na cabeça. Como as palmas marcando o tempo. O primeiro álbum surge pela primeira vez  representado por:
Para Abrir os Olhos
         Nossos sonhos a caminho, Hélio canta ao final. Hoje já me pergunto se seria o nome do quarto disco. Quão interessante seria se o título estivesse sendo propagando em meio aos shows sem que ninguém de fora soubesse? Uma transição curiosa. Certamente se a vida fosse um livro, esse movimento faria sentido.
RL: Está calor aqui. Não que isso seja ruim.
HF: Somos de Cuiabá e lá é um lugar frio.
RL: Estamos acostumados com neve! Vamos fazer uma canção agora do Muito Mais que o Amor.
HF: Uma das minhas favoritas. Eu lembro quando ele me mostrou a ideia da música, quase pronta no ukelele
RL: A gente destrata a música para quebrar as expectativas, vai que... pode ser o melhor jeito.
         É curioso pensar em Cuiabá, como ela pode ser mencionada como quente e ao mesmo tempo tem um inverno que pode trazer temperaturas abaixo de 10° C, quem sabe um dia, a passear pela cidade seja possível entender melhor. Guiada pelo piano vem:
Mesmo de Longe
         E em seguida o lapsteel de David cria uma dimensão espacial para:

Todo Fim é Bom
         Quanto tempo leva até que uma música deixe de ser "nova"? Essa está em período de gestação, entretanto a vejo desde o lançamento do DVD em Santo Amaro quase dez meses atrás. Não filmei a apresentação mas há registros no YouTube nota-se que versos como "Então vem e me abala a fé que eu tenho no amor" já foi "vem e me bate até que eu sangre o seu amor"... belos versos de maneira distinta.Alguns anos depois do lançamento oficial talvez seja a resposta de minha pergunta , se ao início da apresentação Demorou pra ser foi adjetivada como 'velha'. Hélio continua:
HF: Essa já está gravada. Pode cair o avião, pode morrer que está tudo certo. Desde o primeiro disco, se cair tá tudo certo.
RL: É um pensamento positivista...
HF: Existencialista, realista.
RL: Super pé no chão.
HF: Me lembrou uma vez saí de carona com alguém que era muito doido dirigindo a gente ainda ia gravar o primeiro disco  olhei pra ele e falei "ainda não gravei as vozes" semana que vem a gente vai pro role e você pode fazer o que você quiser.
Nessa Cidade
         Surge com violão de doze cordas e bandolim., alguns diálogos propostos entre o violino e o trompete de Hélio numa ligeira troca de fraseados. A certa altura Hélio transforma sem querer os versos "tem uma casa de pálida agonia" em vez de "cheia de flores pra você" há um riso e aceitação pela autenticidade nascida da inexistência de playbacks. Ao final a memória evoca Engole, como seria caso estivesse a ouvir o segundo CD as palmas ao redor me fazem retornar ao momento, todavia.
RL: A gente já começou música de novo por minha causa. Entrei sozinho numa música e a banda inteira entrou em outra. Eu ganho sempre nessas.
HF: Nesse dia foi louco, a gente contou até quatro, mais ou menos assim. Ele entrou e seguiu.
RL: Tem uma coisa no palco, vocês tem que aprender (se dirigindo ao público) é cara de paisagem sempre. "Tô certo". Tem que ter confiança. Eu entrei em Los Chicos de Ayer "Sooouth..." super alto e os caras estavam numa música do Velvet Underground!

         É quase participar de uma longa entrevista, conhecemos mais da banda e suas vivências. Quebra da quarta parede do espetáculo. Cada canção do repertório, constrói um pensamento, você sente como as histórias surgem automáticas, o grupo está sempre à vontade e essa entrega cria uma envolvente atmosfera de amor.
RL:Terá de tudo hoje!
HF:A gente vai tocar uma música que a gente não toca desde 2009
HF: Eu não gosto dela mas tem gente que gosta... mentira, eu gosto sim, não tanto a ponto de tocar. Inclusive a gente gravou aqui nosso DVD Registro Multishow. Nesse lugar, nesse palco. Essa canção está lá e só lá.
Hemisfério
        O violino assume o encerramento da canção. Pensando em retrospecto na utilização de cordas nesse primeiro registro, fica a impressão de que a entrada de Fernanda era um passo natural para a banda. Mesmo depois de anos assistindo eu não tinha me atentado de que estava no local em que o show fora gravado. Ali surgiria uma de minhas canções favoritas Promessas de Navegação então quando Hélio pergunta:
HF: alguém conhecia essa?
         Parece uma pergunta retórica, é mais fácil perguntar quem "não conhecia", embora cada show é sempre o primeiro de alguém. Ou o terceiro. Quem estava na primeira apresentação da banda no Teatro Paulo Autran lembra que a canção também fora tocada lá, mas divago. HF: eu tinha uma banda glam (Valium) quando era jovem. Usava umas roupas da minha irmã. A letra reflete esse tempo. Usar o teu vestido. Ela vai embora, deixa o vestido e um dia você assiste o futebolzão  só pra vestir aquela dor. Quem nunca?
RL: Está cada vez mais normal
HF: Quem nunca usou é porque não tinha um vestido.
HF: Por anos quando perguntaram qual a música favorita, todo mundo falava "acho que é essa":
Se tiver que ser na bala, vai.
         Que começa e acaba com a gaita de Hélio.
HF: Muito obrigado. Fernanda, eu tive um insight! No meio da música lembrei da gente. A Fernanda entrou no segundo álbum. Eu lembro da gente gravando em Cuiabá. Liguei para ela no hotel de madrugada "Fernanda, posso ir aí?". Calma. Aí eu cheguei lá com a bíblia. Falei, Fernanda, sei que tu curte e tal - que o velho testamento eu curto muito, quando chega JC é tão foda que... lindo - então falei, sabe esse verso da "palavra, do conselho do vento", vem ver de onde que é. Eclesiastes. Muito diferente. Provérbios, o cara é bom, o Salomão. Tudo que Deus dá é bom, tudo o que é natural está aí para ser consumido.
         De minha leitura de Eclesiastes, encontrei algumas menções ao vento em 2:11,17,26 e 5:10 que reproduzirei: "Mas há ainda outro mal doloroso: concluir ao final da vida que simplesmente correu atrás do vento; do mesmo modo como veio; assim vai." Hélio é conciso ao anunciar a música que vem para exorcizar tudo:
HF: Essa canção escrevi quando estava muito, muito só
Olha pra mim
         Enquanto David executa um solo de clarinete, na canção construída ao redor de Bb7M e Gm Hélio insere me espera até o fim. É uma das canções que seriam entoada A capella, em um show de 2015 no Teatro Mars, David estava sem o clarinete e o público "solou" o instrumento para se ter uma ideia. Essa é a força de uma banda que cria trilhas sonoras para a vida de muitas pessoas.
Então, um desconhecido gritou: Vangbeats!

HF: Só alegria. Não quero soar arrogante. Esse novo disco vai sair em abril/maio. Conseguimos!
Enquanto ele fala pode se ouvir acordes com a afinação Sol Aberto, antecipando a canção seguinte, Hélio prossegue:
Não quero soar arrogante, prepotente ou algo assim mas vocês vão gostar.
Como o último disco, a gente quis fazer o negócio tão apaixonado. Ele intensifica na forma de falar a última palavra. Sem meias medidas, David Dafré sentencia:
DD: Vai ser do caralho!
         No ano de 2013, antes do lançamento do terceiro cd, a banda divulgou capa, título e algumas faixas com cerca de um mês de antecedência. 2017 também será assim?
HF: Essa próxima canção é sobre amor e é sobre isso que a gente tem que passar pros outros. Sobre respeito, enfim, a gente vai mudar o Brasil! Assim como vocês contam comigo para isso eu conto com vocês. E a gente vai junto. Fora Temer pelo amor de Deus. è uma parada diferente, estou falando de respeito. É uma questão de respeito com a população, respeito com todo o mundo que trabalha no Brasil, com todo mundo que vai se aposentar. Fora! Não só ele mas todo mundo que não respeita o trabalhador brasileiro. Viva a liberdade individual, que cada um sabe o que faz da sua vida. Seja pintar o meu cabelo de roxo ou namorar um rapaz, ou uma mulher que tem as questões dela e ela pode escolher sim, se ela vai fazer um aborto ou não. É tão óbvio! Se alguém não acha isso é uma decepção... Obrigado por me darem o espaço de falar, essa canção é isso, sobre o amor. Eu acho que as escolhas de cada um são baseadas no amor. Só isso.
Meu Sol

HF: A gente vai fazer uma música que a gente nunca tocou inteira desse jeito. Essa música eu pedi hoje pro Reginaldo cantar, que outro dia em casa ele cantou e eu falei "Pô, bem mais bonita!"
RL: Vamos fazer diferente então!
HF: Dois violões? Sempre tem umas coisas que a gente improvisa senão fica uma coisa muito bunda mole. Aquele show todo igual. Claro que existem riscos. Foi uma das primeiras canções do Muito Mais que o Amor essa. Uma que o Reginaldo me mostrou, falou "me ajuda a terminar" e a gente fez basicamente pelo Skype. Eu falei "Nossa, você me leu completamente".
Pra Onde eu Devo Ir?
         Reginaldo canta a seu próprio modo a balada country em um dos momentos mais memoráveis dessa apresentação, quantas oportunidades há para ver algo assim? Fernanda assume o microfone:
FK: Eles estavam falando de correr riscos mas o maior de todos foi eu ter entrado na banda. Mudaram o tom, eu fui quaaase não cheguei;
RL: Foi lindo!
HF: O bom do violino é isso, você não afina fala que é rabeca
RL: O violino não tem traste por isso
FK: Tem um traste só...
          Os risos da banda e do público cessam para permitir a entrada da canção:
Pelo Amor do Amor
HF: Vamos triscar umas botinhas agora
         David Dafré se dirige ao piano, não me recordo de vê-lo no instrumento antes. Hélio o chama de "o cara mais musical da banda" violão, piano, clarinete, lapsteel, bandolim...
Estive
         Canção que por tantas vezes foi a primeira da lista, espelhando o terceiro disco. Até mesmo alterações na ordem do repertório são sutis surpresas.
RL: Faremos mais uma música do disco novo
HF: Igual ao disco só que diferente
Quente é o medo
RL: Com a banda é bem diferente, viu?!
         A primeira vez que a ouvi, no show de lançamento do último DVD no Sesc Santo Amaro, lembro de estar aos arredores próximo a passagem de som e tentar entender a qual música pertencia a batida. Será que na versão do disco ela terá trompete como naquele dia?
HF: Rapaz só de lembrar daqueles shows que começavam as duas da manhã... tinha uma época que a gente chamava todo mundo para subir no palco, não era "sobe cinco" era "será que a gente consegue botar todo mundo?" Aí nossa equipe técnica gentilmente disse "Olha, quebraram três pedais, quatro cabos, chutaram não sei o quê e bateram a carteira do Lazzaroto." Aí a gente seguiu chamando, mas passou a botar a carteira no bolso da frente. Vamos tocar uma do primeiro álbum agora.
Enquanto Isso na Lanchonete
         O bandolim e o violino casam perfeitamente com a música, é praticamente um pleonasmo. Canções antigas tornam-se ouro escondido pelas novas canções. Ainda que não hajam lágrimas é uma tremedeira, uma vibração em meio a apresentação. Em seguida Hélio continua:
HF: Essa eu queria dedicar especialmente para um "casal que vai casar!" Eles fizeram o clipe dessa música, são criadores do  Around The World in 80 Music Videos. São incríveis e maravilhosos. Leo, Diana essa canção é para vocês:
Eu Sei onde Você Está
         Assim que termina o passeio de bicicleta pelas velhas construções Piracicabanas e Hélio anuncia que o show está chegando ao fim, os fãs  sedentos começam a gritar como numa torcida: Cachaça! Cachaça! Antes que mais vozes adiram ao clamor Hélio explica que Cachaça é uma música com guitarra e não ficaria boa no formato. "Acreditem, vai ficar caída. Não é nada pessoal com vocês" diz em tom conciliador. (Como outro pedido fosse formado tão logo a primeira recusa, começam a surgir pedidos para Mi Vida Eres Tu.) Hélio conta que a pessoa que está a menos tempo na equipe está a minimamente quatro ou cinco anos, ele aproveita o ensejo e agradece:
Direção de Palco - Calil Barros
No Som - Anderson Chames
Produção - Patrícia Pierro
Loja: Cláudia Almeida
HF: "Chicos, buenas noches!"
         O Hélio que fala em español seria um heterônimo nascido na temporada fora de si em autoexílio na Bolívia? O publico recebe as palavras com empolgação, não sou completamente fluente em español mas me arrisquei no Google Tradutor para manter o texto da maneira como foi dito:
HF: Ya hace doce años. La primera vez que tocamos en São Paulo. Doce años! No teníamos ni vinte años, éramos muy chicos ¡pero ya muy locos! En la primera noche... no, no puedo contar. En la segunda noche... también no puedo contar. ¡No puedo contar! La unica certeza és: Se tenemos alguna dignidad es porque en aquel tiempo no habían smartphones. No havía cámara por todo lado. Esto Incluye una viaje para el Acre en que fuímos conocidos como Los Salvajes de Mato Grosso. Porque éramos libres. Solo por esto. Porque nos besamos en la boca. Porque besamos las chicas y los chicos en la boca. Porque éramos felices y somos felices. Éramos libres y somos libres. Porque besamos los chicos en la boca. Por que ser libre, y solo ser libre, no es muy lejos, no es muy longe. Está muy cerca, muito perto ser libre. Solo tien que hacer una cosa: ¡Ser!
Mi Vida Eres Tu

         Antes que Hélio comece a contar a história seguinte surgem os acordes Em e B7/4  e todos percebem o que está por vir...
HF: Me lembro eu pelo meu quarto, bem pequeno, em Cuiabá. Só escrevia canções em inglês naquela época, ouvia muito Bob Dylan, e o Renato Russo era o cara que era tão gênio para mim que eu não conseguia nem tentar fazer algo parecido com o que ele fazia. Eu olhava... Aí um dia eu falei vou tentar escrever em português e eu fiz essa música: Semáforo
No meio da canção ele continua
HF: Essa canção virou uma crônica daqueles dias naquela cidade quente e pequena, onde a gente não tinha muito o que fazer. Mas a gente se amava tanto! E a gente amava tanto o que a gente estava fazendo: as canções, as bandas, os sonhos. Numa época em que a gente não ouvia um ao outro ainda. A gente ficava muito tempo em silêncio pois sempre tinha alguém mais velho, alguém mais "vivido". Que sempre tinha algo a contar.
         A jam no meio da canção é exemplo de como músicas podem mudar para melhor ao vivo com mudanças na instrumentação, é como o clarinete e o violino tivessem estado ali desde que a música nasceu.
HF:E tinha um amigo nosso, ele dizia que nas horas vagas ele tinha o hábito de voar. Ele dizia e ninguém acreditava. Até que um dia à beira do rio Cuiabá, a uns duzentos metros de casa. Depois de uma sessão ma-ra-vi-lho-sa. Duas infusões, duas horas, duas vezes ao dia ele abriu os braços, saiu correndo em direção à água e começou a voar! E a gente gritava VOA, VOA! JORGE, VOA! Traz uma estrela pra mim!!!
Antes do fim da canção surgem os versos:

"Minha alma se expande
Ao ver-te fremir...
Mas se um dia você precisar de mim
Me procura debaixo da sombra
Do seu sapato
Em algum lugar então
Eu te espero
Quando eu conheci a mim
Nunca mais me senti só"

HF: Boa noite! Obrigado. Que vocês voltem para casa se sentindo mais próximos. Não da gente, mas de vocês. Obrigado!
         David entrega as folhas com o repertório que eu pedira gesticulando antes do início de Semáforo e então a banda se retira do palco. Mais uma vez todos os presentes se unem em uma só voz pedindo "mais um":RL: Curtindo essa noite? chiquérrimos estes garotos de Cuiabá. "An acoustic night". Temos que ser nós mesmos.
HF: Agora essa, a gente tocava no início de carreira é em inglês, não é nossa mas fala sobre a gente, se alguém fez mal a gente só tem uma coisa a dizer: Foda-se!
Tinha que dizer, enfim, eu estava muito no discurso do bem-estar.

         A banda se rende a uma versão do hino que se tornou sucesso na voz de Gloria Gaynor
I Will Survive

Repertório gentilmente cedido por David Dafré
      Para muitos, a noite acabara ali. O prazer da música, tão somente, saciara a permanente busca. Para outros, no entanto, havia ainda o vislumbre de uma possibilidade: encontrar a banda pessoalmente por instantes. Há quem seja contrário à prática, lembro de um texto de Mara Menachem descrevendo suas desventuras ao conhecer o poeta Allen Ginsberg. Sua conclusão era de que saber de mais pode transparecer as imperfeições, revelando a humanidade do artista. E se o caso fosse justamente travar esse contato com o humano?
"Todos possuímos mundos interiores que estão, em graus variados, em conflito com o mundo exterior, e o conteúdo desses mundos interiores e das tensões geradas por eles tem muito em comum. Por suas tensões serem importações universais e não pessoais, os grandes criadores conseguem nos atrair quando encontram em sua obra um novo caminho de reconciliação" p.412, A Dinâmica da Criação - Anthony Storr
         Por instantes conseguimos falar com Reginaldo que explicou eles a banda abriria o camarim em algum tempo e seria uma oportunidade legal. A informação se espalha por outros fãs e começa a espera, embalada pela discotecagem que começou em Cara Estranho do Los Hermanos, Somebody Told Me do Killers, Lua Vai do Katinguelê, Camarote do Wesley Safadão, Cinquenta Reais da Naiara Azevedo, 10 % de Maiara e Maraísa, Pimpolho do Art Popular, A Dança da Vassoura... Quando passou por outra do Molejão, Cilada, me fez pensar que as canções eram escolhas da própria banda dado seu histórico de covers. Qual teria sido a trilha a guiar cada um dos fãs ao camarim naquela noite fatídica em que Fabiana pode confessar para Hélio quão apaixonante é sua voz, declaração recebida por ele com gratidão? Contamos nossa história a ele que se disse surpreso com os títulos escolhidos por Cláudia e Reginaldo na promoção: Pelos Olhos do Tempo e Mar de Mim e confidenciou que já teve uma música chamada "Trem do Tempo" mas ela não vingou e se perdeu. Há um apreço pelo futuro e por conta disso não se encontra tantas canções avulsas fora do cancioneiro oficial. Ele explica que no terceiro disco entrou uma faixa que fora composta para o segundo mas essa é uma ação rara na carreira da banda.
         Fernanda Kostchak contou que na próxima turnê não poderá usar seus estilosos saltos pois as canções estão intensas. Estar com os integrantes pessoalmente é mágico e a simplicidade e alegria com que recebem o público mexe de uma forma capaz de ligar ainda mais os fãs ao trabalho da banda. Algo assim não acontece todos os dias. Depois de fotos com a banda Reginaldo pergunta: Vocês estarão no próximo show, no CCSP, em março?
        Não era preciso prever o futuro para saber que a resposta era positiva!

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Tudo Depende de Conforme For (ou A Balada de Raul e Júlia)

“A gente escreve porque todo o resto morre, é para preservar aquilo que morre. A gente escreve porque o mundo é uma confusão desconexa, que não se consegue entender, a menos que se faça um mapa com as palavras...” - Edward Sheffield em  Tony & Susan
        
Ilustração de Jéssica Feliciano inspirada no amor de Deus, na relação de luz e trevas.

         Então, às vésperas da postagem, um abatido Raul pergunta se eu poderia postar sobre qualquer outra coisa. Digo a ele que estamos trabalhando juntos naquele projeto há praticamente um mês, e não havia como ganhar as horas investidas falando de nada além. Ele passara tanto tempo resoluto da vontade de ter sua história contada. Agora, sem mais nem menos, estava demovido da ideia. Você pode falar de um dos shows que tem visto, por exemplo. De fato, expliquei, mesmo assim essas coisas levam tempo meu amigo. Que eu tenha visto cerca de seis apresentações no mês de janeiro, encontrei tempo hábil para escrever algo apenas de uma delas, quase cinco dias depois. Eu entendo mas... Sem mas, redargui. Tentei pressiona-ló a explicar.
         De súbito, Raul se deteve olhando para outro lugar. Levei alguns segundos para perceber que seguia o rastro de uma borboleta. Eu costumava dizer que quem está com a razão, ao se ausentar, deixou as borboletas com respostas. Foi como se ela o estivesse levando a algum outro lugar, então, pousando os olhos de um azul límpido em mim, Raul explicou: Júlia seguiu em frente. Seria ridículo dizer qualquer coisa a essa altura, e, de todo modo isso estava traçado há tempos, percebo agora. Não era questão de destino e sim de ações que tomamos em nosso dia-a-dia. Tal a música dizendo "Deixamos pra depois uma conversa amiga que fosse para o bem, que fosse uma saída (...) Deixamos escapar por entre nossos dedos a chance de manter unidas as nossas vidas". Tenho medo do que podem dizer ao ler essas palavras. Falei com minha amiga Meena e ela disse não entender muito bem meus sentimentos por Júlia, achara ser questão mais do que resolvida, e era, o que torna minha reação mais sem sentido, Thales. Eu conheci William brevemente, não o bastante para dizer que era uma boa pessoa, sabe? mas era a escolha de Júlia e o mínimo que espero é que sua rabeca embale os sonhos dela. Lembro de quando Odisseu, meu irmão mais novo, aparecera com uma nova namorada em pouco tempo. Júlia apontou indignada em como poderia alguém ser tão volátil ao escolher o esquecimento. E agora...
         Esbarramos sempre na escolha do outro, interrompi o fluxo de meu amigo, mudarmos de opinião faz parte desse processo;  Raul, você disse que era aniversário de Júlia e por isso me fez reunir todos os seus escritos desde o dia três de janeiro e recriá-los a meu modo, fui bem claro em dizer que não compunha sob demanda e você pediu que eu tentasse musicar seus pensamentos e eu consegui, independente do que digam acerca do resultado - pode ser ela nem goste - a canção será o mais próximo de um retrato de quem tu era naquele instante; Não vamos desacelerar, estamos apenas começando. Nada para esse trem.
         Pode ser sido meu momento Heisenberg ou uma epifania pessoal mantida em segredo. Raul concordou que eu publicasse aqui minha compilação de suas memórias depois da canção que compus baseada na história dele.



Tudo Depende de Conforme For (2017)

Desenhar um futuro é
Por vezes, críptico, tríptico
Baluarte erigido
Atrás da porta
Despertou da Anunciação
Pelo aquário, pórtico mítico
Coração em que
Minha vida aporta

Generosos são os ares
De tua nova terra
Todo caminho transporta
E me leva
Atravessava um mar vermelho
Para alcançar as veredas
Do teu riso

Tudo depende de conforme for
Se amor ainda há (...)

Pelos campos, vi José em romaria
Santa Cecília veio a mim
Antes que houvesse oração


A BALADA DE RAUL E JÚLIA
(Sobras Memoriais de Um Diário Inundado)


Prólogo
O Brasil discreto sobre o amarelo creme da camisa o levou a pensar se ela fazia parte do seleto grupo capaz de entoar o hino nacional depois da virada do ano. Raul estava distante de ser um patriota ou ufanista. Existia no país, apenas. Um tanto alheio a tudo, sem que isso fosse motivo de orgulho. Era, antes, parte de seu conflito diário. Suas não-escolhas constituindo o absoluto desejo de não ser todomundo. Lá estava ele, num galpão, em meio a produtos muitas vezes desprezados por vários dos consumidores finais. Trabalhando! A camisa de Júlia suspendeu a tarde de dezembro. Sua seriedade ao lhe delegar atividades o intrigou tanto quanto o cabelo preso tal a cauda de um pássaro. Raul decidiu que a chamaria de Chefe. Isso foi há tantos anos que o espantou ter recordado no momento em que viu seu ônibus se aproximando.

I
O bairro desperta a cada parada de sua condução. Raul fica indeciso entre a leitura de seu livro e a atenção com o caminho desconhecido. É ano novo, embora tenha dúvidas se depois do réveillon isso ainda importe. A segunda semana do ano já se mostra implacável. Embora ainda haverão os cumprimentos dos retardatários em folga até a segunda quinzena. O aglomerado de portas de portas de aço enroladas o encaram, o lembram do período em que travava guerra com uma delas para iniciar os trabalhos na agência de publicidade. Tentava agir rápido, apreensivo com a ideia de ser visto neste apuro. Ao menos não precisava apresentar isso num currículo. Uma moça recostada na parede de aço se maquia de maneira improvisada, no espelho parece um quadrado de sete por sete centímetros. Já passou. Reconhece a praça anunciada numa curva. Sente um nó. Tinha estado ali cerca de oitenta e seis dias antes para visitar uma das unidades do serviço social do comércio. Andou com Júlia por aquele caminho ermo, enquanto imaginavam como se sairiam em meio a um apocalipse zumbi. Ela pensava em comprar um Playstation para a mãe – que adorava os universos de Silent Hill a Resident Evil – quando a situação financeira estabilizasse. O mapa que tinham a dois contemplava uma série de rotas e caminhos. Enquanto se dirigia ao trabalho, não pensava se depararia com ele tão cedo em seu dia com uma de suas linhas invisíveis.

II
Naquela semana tinha passado em frente ao Santuário das Almas e à Paróquia São Luiz Gonzaga. Ao observar as estruturas – mesmo quando simples, igrejas podiam alterar os ares de áreas comerciais – pensou em Dom Helder Câmara e seu modo de escrever poemas, quase contra sua vocação eclesiástica e ao mesmo tempo tão propriamente sensível com os dons de Deus. Raul não escrevia poemas, pensou em Thales, amigo dos tempos de faculdade que passava horas nesse intento. Teria ele prosseguido com os versos ou estaria preso apenas a um cotidiano mercantilista como ele próprio? Quem sabe fosse como um Kafka, trabalhando numa companhia de seguros. Ou talvez ele apenas tivesse receio demais de errar e sabotasse as próprias possibilidades no mundo literário. Tentaria falar com o Barros e descobrir algo do paradeiro do velho amigo. Não levou muito tempo para encontrar seu blog, em seguida, enviou um e-mail mencionando a ideia que tinha para um post. Thales concordou em escrever mas tinha reticências quanto a compor. Verei o que faço, era a única linha de sua última mensagem.

III
Raul tornou a olhar o smartphone. Nenhum resquício virtual de Júlia. Antes havia ao menos o que se pautar. Fechar os olhos e sentir que eu vivo bem com a solidão ela disse ser apenas uma música que gosta sem relação com o contexto dos versos anteriores ou posteriores. Podia ser ele enxergasse as coisas de uma maneira complicada, por mais simples se apresentassem. Esse era um tema recorrente de suas conversas: a objetividade como possibilidade concreta. Sim ou Não lhe era um martírio. Costumava brincar ser um defeito adquirido na escola, pela quantidade de encontros com a frase justifique sua resposta. Numa das primeiras vezes trabalharam juntos, ele precisou deixar uma nota por uma alteração qualquer no estoque.
Você não precisa escrever um livro.

IV
Um pêssego.
O status era apenas o suculento fruto.
Entrecortava os dias e seu significado lhe escapava. No budismo era sagrado e representava longevidade. Para os antigos gregos era a sagrada fruta do deus do casamento. Georgia é o estado do pêssego. Ela não era budista, não estava casada e tampouco nos Estados Unidos da América, ao menos, até onde ele sabia.

V
Morria a primeira quinzena do ano quando enfim conseguiu uma ligação atendida.
Nunca seria o que era antes, era sempre a cumplicidade esquecida. Ela começaria academia, reflexo do que ele também estava dedicado a manter. Tentava descer todos os dias cerca de três ou quatro quilômetros antes de casa e andar o mais rápido que conseguia antes de ser tomado pela sensação de que o ar do mundo era insuficiente. Usava o último disco do Metallica como propulsor para estas ações tão estranhas a ele. Querendo o som mais alto que os problemas em sua cabeça. Mesmo quando garoava o ritmo era mantido. Precisava disso. A indiferença pode ser um poço de fundo incerto. De repente você é acordado por vinte quilos a mais e eles não se calam. Quem sabe, o andar com destino seria o suficiente para enfim poder olhar para si mesmo na certeza de apenas uma consciência.
Agora ela vinha para a cidade dele quinzenalmente, mas a intenção era aumentar o hiato. Ele tentou brincar com a metonímia nominal. Ela não pareceu achar graça. E sempre o corrigira! Quando ele contou que o encarregado não estava presente ela pareceu pensativa por isso ele não me ligou. Raul juntou dois e dois: havia ali um sinal, se havia ligações diárias sua falta de sorte poderia ser proposital. Ele faria o possível para evitar as tentativas de ligações. Seria isso o bastante?
Perguntaram-se acerca dos pais.
Mas você vem para cá? Não devia ter estranhado o tom na voz, obviamente não forçaria sua presença, no fundo, sabia o que ela não havia dito. A mudança, a nova cidade. A chance de começar tudo em estado novo. Fácil descontextualizar a frase de Neo: Vou desligar este telefone e vou mostrar a essas pessoas o que não quer que elas vejam. Vou mostrar a elas um mundo... Sem você. Lembrou-se do dia em que olhou o contrato da nova casa, copiar o endereço mentalmente. Já fizera isso antes. Outra das ações incompletas. Ela poderia ter certeza, ele não realizaria nada absurdo. Agora, ela não tinha intenção de correr após uma apresentação, todas elas acabavam muito tarde. Seria um problema voltar a casa de sua mãe. Em cada uma de suas sentenças entendia que a casa dele não mais era opção, as diversões em cada vitória de corrida contra o tempo eram lembranças perdidas.

VI
Ocupava-se como podia, em vinte dias lera quatro livros. Podia ou não ser questão de orgulho, havia quem ria de suas preferências. Era visto em todas as frestas temporais com um livro na mão. Visitava livrarias compulsivamente. Isto o livraria? Na prateleira com os títulos em destaque avistou a edição de luxo de Drácula em suntuosas quatrocentas e setenta e quatro páginas (...) Dedicava algum tempo refletindo questões humanas; custava tentar imaginar quais eram as histórias e preferências de cada pessoa. O que levava alguém a descer de um carro colocando uma arma no rosto de dois jovens pelo motivo que fosse? Pudera conhecer estas histórias. Usar a fé como um ato de risco contra iniquidades. Mas isso não era ele. Haveria um universo paralelo em que a vida de Raul e Júlia tinha acabado naquela noite? Se as coisas funcionassem assim, deveria agradecer pela intervenção divina, ou, a bondade doentia do assaltante ao render duas pessoas com uma arma de um plástico tão infantil que o medo absoluto transformara em aço. “Vivo sem saber até quando ainda estou vivo, sem saber o calibre do perigo eu não sei da onde vem o tiro.” O tiro que não veio os atingiu com vida e futuro.

VII
Agora era o futuro.6h58.
Piscou algumas vezes tentando reconhecer alguém na praça, enquanto dezenas de trabalhadores entravam no ônibus. Uma blusinha decorada com a Torre Eiffel, a calça social encerrando numa leve boca de sino cobrindo parcialmente seu alvo all-star. Alguém mais inteligente dissera outrora: não sendo impossível pode ser provável. O ônibus prossegue antes que o reconhecimento termine e em sua extensão ele ainda consegue ver uma revoada displicente de pombos feliz com a ignorância benevolente dos velhinhos dispostos a doar mais que suas três refeições diárias. Um dos pombos parece pensar, ah se soubessem o que é toxoplasmose, ao que o outro retruca num gorjeio ser melhor aproveitar o banquete. Esse primeiro pombo poderia ser ele mesmo, por vezes um pária. Você está entre eles mas não é um deles. Era provavelmente hora de escolher um novo mote pessoal. As palavras de Mao Tsé o acompanharam por demasiado. Acha as ruas estreitas demais. Avista um homem com um cão branco. Certamente pertencente a outra pessoa, pela violência empregada com a coleira. Ainda não são sete horas e há tanta vida nas paredes. Lembra de um artista da cidade vizinha que assinava todas as suas obras como Xicano. Seu spray moldou uma série de mulheres realistas nas muradas. 

VIII
Como estão os ônibus?
Perguntou um colega que partilhara o mesmo trajeto até adquirir uma motocicleta.
Tenho ido e vindo com eles, em quinze minutos estou aqui.
Já sei que São Paulo acabou para você!
Ele diz isso sorrindo, faltou que piscasse para parecer mais absurdo. Parecia dizer, sei seu segredo, você já arquitetou mudanças em sua vida sem avisar a ninguém.
Raul sorriu por reflexo, contradizendo o parágrafo anterior, ainda era uma dessas criaturas sem jeito para convenções. Mal sabia seu colega como tudo estava diferente. Essas brincadeiras seguiram por alguns dias, até que cessaram de súbito: intuiu que Júlia explicara o acontecimento a ele. Era um dos sinais, além do silêncio e da surpresa ante a possibilidade de uma visita. Ainda tivesse dificuldades em escrever, Raul tinha mania de achar tudo óbvio. O silêncio, o nervosismo no tom de voz quando propôs uma cordial visita, a mudança no comportamento de colegas que sempre tiveram sua relação como tópico pessoal, as chamadas não atendidas. Mesmo o pêssego. Sinais.

IX

Como os que o ônibus atravessava sentido metrô Santana. Não levou trinta minutos para chegar à Armênia. Ela adoraria esse trajeto. Palavras encurtam distâncias enquanto adiantados. Por anos cruzaram avenidas, vielas e veredas, velozes. Se perdessem o último trem passariam a rua em liberdade. Ressabiados com cada figura a surgir quebrando a luz, livres, entretanto. Andariam de um lado a outro como que buscando a corda de um relógio imemorial. Dar-se-iam as mãos. Certos de quererem mais da companhia campo de força contra as lufadas laminosas da madrugada. Até que a deixasse na casa dos pais e rumasse para a sua.

X
Da passarela Raul avista ao ônibus de sua intenção. Amplo em seu esplendor branco. Perfeito para tentar escrever o que seriam as últimas linhas de sua abreviada narrativa. Tinha menos de uma semana para concluir tudo. As águas do fim de janeiro tinham o cheiro das chuvas de Poseidon, e, em meio a uma dessas torrentes percebeu parte de suas anotações dissolvidas dentro da mochila. Seria perfeito se o seu objetivo fosse uma reciclagem rudimentar de papéis. Pensou, teria sido melhor se tudo tivesse sido destruído? Restavam sete dias. Júlia em seu reservado silêncio o levara a crer em suas suposições. Os horários pareciam randômicos. Escorava-se como podia na caixa coletora do coletivo para escrever. Seria além do aceitável querer a colaboração dos passageiros? Que ficaram sem pagar a condução pelos próximos vinte minutos, bastaria. Raul podia ouvir a Júlia de sua mente na tentativa de convencê-lo a parar de escrever:
- Anos atrás você me levava mimos e bilhetes e eu sabia você queria mais que amizade, mas qual o sentido disso agora? Para quê fazer isso?
Ao ceder passagem para uma atarracada senhora. Se deteve na tentativa de enxergar os próprios olhos refletidos na janela. O azul deles se confundia com o amanhecer. Era assim o fim? Fora o primeiro a entregar bilhetes e agora escrevia uma carta derradeira? Justiça poética carrega beleza apenas em histórias alheias. Tudo o mesmo, nada sendo igual. Ouviu Vitor Ramil entoar por seus fones. As melhores frases para descrever sua vida viriam sempre de outros autores? A cada momento em que se perdia para alguma resposta gaguejava “não, sim, não”. Júlia sempre brincara com essa aparente dificuldade em entregar uma réplica objetiva. Raul queria poder sorrir pela lembrança. Não percebeu a passagem do dia quando viu as janelas embaçadas de noite. Era impossível distinguir as luzes dos letreiros em neon. Se o ônibus fosse para além do destino esperado ele aceitaria. Nada era verdadeiramente circular. Seria expulso no terminal, a menos inventasse alguma desculpa de ter dormido, apelando para a misericórdia dos funcionários da companhia de transportes. Tentava revelar fotos e vinha se mostrando uma tarefa complexa. Até mesmo a rede FOtOtica tinha saído do ramo. Quais eram as chances? Um colega se prontificou a imprimi-las. Sempre que se propunha a uma missão a desenvolvia sozinho. Uma vez ele pedira a ela para anotar algo nestes termos:
no dia x Raul começou uma surpresa. Diversas vezes ele não aguentava e esclarecia cada uma delas antes da hora. Haveria uma designação específica para as pessoas com essa linha de ação? Como quem esconde o papel de presente dentro da caixa? No interior de sua caixa craniana surgiram sonhos. Ela enviara duas frases mais longas, seu conteúdo fora capaz de acorda-lo. Olhou para o smartphone e as notificações eram inexistentes.

Epílogo:
Era dia de Iemanjá, e Raul seguia com suas ações corriqueiras. Até que, quando chegou o horário de almoço, ligou os dados móveis para se distrair enquanto aquecia sua refeição no micro-ondas coletivo, Era Júlia:
- Oi
- Bom dia
- ...
Teve a sensação estranha de déjà vu a lhe raptar o apetite. Mas era aquele tipo de coisa que eventualmente ia acontecer. Melhor seria se tivesse ouvido a si mesmo. O que o levou a querer dividir novecentos por trinta?
 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Johnny Hooker no Sesc Pinheiros

“Estas alegrias violentas têm fins violentos. Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora, que num beijo se consomem.”
(Romeu e Julieta, Ato II, Cena VI)

         Dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá vá pra perto do mar... Acordei e me vesti com essa impossibilidade geográfica. Se nesse momento ascendesse seria estaria no mar negro que é o céu. Pernambuco fala para o mundo no natalício de Lenine. Divago em termos. Desde o dia vinte e nove de janeiro não paro de falar da apresentação de Johnny Hooker no Sesc Pinheiros. Chega ao ponto de, quando travamos algum diálogo mais musical nas frestas dos expedientes, eu mencionar de leve algum aspecto de produção ou da habilidade dos músicos que o acompanham em turnê. Mais de uma pessoa decorou o nome. Você tá falando do Hooker, né? O sorriso denuncia.
         Sabe quando você conhece um artista no momento certo? Quando tem a impressão de que uma série de canções conversa contigo mais do que se você mesmo colocasse seus sentimentos em palavras. Essa é a sensação. O fato de me ter sintonizado no Experimente do Canal Bis por um acaso com Johnny no palco capturou toda a minha atenção. Quando descobri que em 2014 ele interpretou um personagem na novela Geração Brasil e o nome dele era o meu: Thales Salgado foi difícil não me deixar envolver pelo velho fantasma do Destino. Ou seria providencial? De todo modo, aguardo a próxima vinda dele à São Paulo para enfim conhecê-lo.


         Antes que ele chegasse, quebrava o breu apenas o glitter nos rostos e corpos em movimentos ao meu redor. O primeiro momento a me surpreender com o espetáculo foi ao primeiro sinal, momento em que as pessoas aproveitam a liberdade para escolher as poltronas mais próximas do palco, uma multidão se dirigiu diretamente à frente do palco. Eram mais de cinquenta pessoas ali. Por mais estranho que pareça foi o último número que contei. Esse movimento atípico tornou o surreal memorável. A exaltação era tanta que quando a introdução começou consegui discernir pouco das palavras declamadas
"Tentei te reescrever já que não consegui te desacender. Fiz preces secretas aos Deuses, todos os dias. Dentro do teu corpo eu te devoro como um demônio no deserto. Criança mítica. Pelos teus caminhos eu sopro maconha dentro da tua boca. Minha língua se desfaz no sal do teu corpo." 
         O transe tribal parece tomar conta de todos os presentes. Todos eretos como esquecessem existiam poltronas no recinto. As luzes se insinuam. "Vocês estão prontos para transar comigo essa noite?" Cada frase do artista era comemorada com os mais variados gritos Lindo, Gostoso, Diva. Entre gritos e suspiros Johnny magnetiza a platéia. Se ajoelha em desespero, entrecorta convulsões com olhares lascivos. As palmas dos presentes imitam o registro de estúdio, quando preciso. O show ter ocorrido no Dia da Visibilidade Trans tornou ainda mais urgente o discurso "2017 vai ser um ano pra gente resistir essas forças retrógradas que estão chegando e não vão perdoar". Há um posicionamento social que vai além do espetáculo e, pela projeção que os artistas recebem, é sempre válido.
         O microfone se torna garrafa na interpretação de Garçom e tenho que reiterar um pensamento à Estela, ela realmente permeará o inconsciente coletivo de todas as gerações, pelo conteúdo das letras ser um desabafo atemporal a que qualquer um já esteve sujeito. O universo lírico de Johnny é tão visceral quanto acessível e basta ser humano para sentir isso. Há macumbas e amarrações por todas as esquinas, cartazes de amarrações colados em postes e viadutos. Somos todos passionais e selváticos ao passo que no instante seguinte podemos nos entregar à procura do desejo original residente abaixo de todos os desejos esmagados por outros na mesma busca. As histórias tecem, as intervenções poéticas com trechos dos clipes, as cores guiam os ouvintes pelo universo de desilusão, mas também amor e até ternura. Terminando com a declaração de que as festividades do carnaval 2017 estavam abertas! Há mais sentimentos que não cabem em palavras, resta ouvir cada uma das canções no aguardo de sua volta à cidade de São Paulo. Que venha o Desbunde Geral!

ATO I
Eu vou Fazer uma Macumba Pra Te Amarrar, Maldito!
Alma Sebosa
Chega de Lágrimas
Só pra Ser teu Homem
Segunda Chance
Boyzinho

ATO II
Amor Marginal
Você ainda Pensa?
Garçom
Pense em Mim
Boato
Crise de Carência

ATO III
Volta
Bandeira Branca
Desbunde Geral

"Desejo nos cegue, nos guie, nos proteja até o fim dos tempos"