domingo, 30 de abril de 2017

Beijo Estranho

"Essas músicas abrem uma nova janela na minha alma e por ela entra um ar que eu nunca havia aspirado. Sinto uma alegria imensa e bastante natural. Fico livre de diversas amarras da realidade e parece que o meu corpo está flutuando alguns centímetros acima do chão. Para mim, originalidade deve ser assim. É muito simples. Outro dia eu estava lendo o New York Times (2/2/2014) e encontrei o seguinte comentário sobre o surgimento dos Beatles: "Eles produziram um som novo, enérgico e claramente característico deles". É uma definição bastante simples, mas talvez seja a mais compreensível sobre originalidade. "Ser novo, energético e claramente característico." - Haruki Murakami, Romancista como vocação

Capa do álbum, criação de Juan Pablo Mapeto

         Foram-se mil trezentos e quarenta dias de Muito Mais que o Amor. Nesse meio tempo, Reginaldo Lincoln firmou seu lado compositor em seu Nosso Lugar (2014), Hélio Flanders se vestiu de tragédias portenhas n'Uma Temporada Fora de Mim (2015); Pudemos experimentar mais da voz de David Dafré nas experimentações em To Dorothee from Leonard (2016) e a hipnótica Fernanda Kostchak mostrou sua versatilidade fosse participando em show da banda psicodélica Violeta de Outono ou realizando, em seu duo Elektra, a trilha sonora da Night Run SP. A banda também aproveitou para registrar o sucesso da turnê em seu segundo dvd, e, como representasse um rito de passagem a banda passou a apresentar duas novas canções. Quando eu Cheguei na Cidade e Quente é o Medo. As últimas apresentações, em formato acústico, não permitiam vislumbrar a trilha a que a banda se dirigia. Que sensação melhor saber que, independente do que viesse, seria bem-vinda surpresa? Sim, há quem argumente que a expectativa é a mãe da decepção. Não é o caso com esse lançamento. A banda presenteia o mundo com um doce Beijo Estranho.
         Bons discos instigam desde o primeiro momento, o design da capa é belíssimo: num momento de pareidolia Rorschachiana, enxerguei a imagem de um artista derramando seu sangue em silêncios azuis. Com a tinta de suas veias ele roga por uma renovação. Garantida pelos morcegos cor de pêssego alcançando a cena. Se pensamos, claro, pelo ponto de vista da cultura chinesa que tem os quirópteros como símbolos de bençãos e boa sorte. Gosto como entre o equilíbrio dos cinzas e azuis há os vermelhos centrais. Estaria o personagem em espécie de nuvens? Posso estar a superanalisar; sem mais delongas, adentremos o disco: quando o vídeo de Beijo Estranho foi lançado semanas atrás, tivemos uma amostra do que estava por vir: começando com o piano passando pelo violino que passeia do lado esquerdo ao lado direito do áudio, praticamente criando uma resposta sensorial autônoma do meridiano involuntária.  A letra entregava uma chave importante de interpretação: a busca pelo equilíbrio do Ser. O eu-lírico descreve sua jornada de inquietação com os próprios rumos, o medo de olhar pra si mesmo. Destaque para as vocalizações de Flanders. É um upbeat - reflexo da abertura para influências de acid rock e hippie glam, como descrito na programação do Sesc? - e abre o disco soando diferente de tudo o que a banda fizera antes.
         Se eu fosse apostar uma música para encabeçar o repertório nos shows certamente seria Todas as Cores, sabe aquela coisa de "canta uma canção bonita falando da vida em ré maior" da Intuição de Oswaldo Montenegro? Começa com a gaita, violino, as vozes de Hélio e Reginaldo se fundem em algo que só pode ser definido como Vanguartiano. A guitarra de Dafré domina essa faixa que, diferente dos sentimentos da anterior que flutuavam entre despeito e resignação, fala de acreditar no amor e seguir em frente sem medo. A confiança mútua se apresenta como trilha para seguir por qualquer salto no escuro. Us against the world, Bonnie e Clyde, "ninguém vai nos parar". Na faixa seguinte finalmente o verso de Helio e Reginaldo no Sesc Bom Retiro em outubro de 2016 faz sentido. Naquela vez, depois da segunda música eles cantaram "o inverno acabou" e disseram que o público em breve entenderia. Felicidades principia com as pétalas, delicadas notas no teclado caindo e o trompete de Hélio num contexto alegre - ou muito me engano ou é a primeira vez. O arco de Fernanda costura os versos. O brejo das almas faz lembrar de Drummond. Whitmânicas visagens converte as Folhas da Relva em matéria prima. A influência de WW avança na criação.  Gosto de sentir um quê críptico na letra, seu final, todavia, carrega uma verdade: O amor é mais simples do que amar.
         "Não sentir vontade que não seja de infinito" me lembrou do Verbo no Infinito de Vinicius de Moraes. E o Meu Peito Mais Aberto que o Mar da Bahia é uma faceta do Vanguart mezzo-dançante. Dá para flutuar com as cordas, vocalizações e sair guiado pelo groove do baixo. Uma declaração que desemboca num cântico ao final. Tem ares de poder se tornar uma das favoritas dos fãs nesta nova safra com versos tais "E eu só queria te guardar/Onde eu pudesse ter/Sempre que eu sentisse medo/Tudo então seria pra dizer/Que o teu amor sem fim/Já mudou a minha vida". Homem-Deus traz Julio Nganga no cravo e o arranjo do lendário Wagner Tiso. Mais uma vez o duo Reginaldo/Hélio comandando a atmosférica canção; com imagens tais "quero água pra deitar". Em entrevista recente ao Estado, Flanders pontuou que esse não é um disco que será fácil para alguém que costuma seguir o trabalho da banda. Pode parecer pretensão, mas, no meu caso julguei ser justamente o contrário: se no disco anterior a intenção criativa era parar de fazer metáfora e falar o que as coisas são. Beijo Estranho se sobressai por apontar um equilíbrio entre as líricas dos álbuns anteriores.

Foto: Felipe Ludovice
         Quando eu Cheguei na Cidade já foi definida por Hélio como um rock-psicodélico-deprê-fantasmagórico. No show de lançamento de Muito Mais que o Amor ao vivo esta foi a primeira composição nova a dar as caras. Àquela altura com Júlio Nganga no orgão. Após a saída do baterista Douglas Godoy, Júlio dividiu as gravações do instrumento no álbum com Loco Sosa. A letra me lembrou o microcosmo de Nessa Cidade. Se naquela o eu-lírico explicava haver uma casa que ele não podia mais entrar, agora, há um sujeito se dirigindo a alguém nos termos "hoje já não tens a chave" e segue "e o que foi teu já é meu" afirmação que vai de encontro ao verso "boa parte de mim vai embora/a sua parte que hoje sou eu". Fantasmas do passado assombram o presente. Elas são parte da vida de um personagem em vários momentos: quando ele sai pra cidade, quando ele chega, e até mesmo quando ele foge e se depara com "todo o fim é bom" nos neons. Na cidade vanguartiana orbitam personagens diversos. Indo além, em Demorou pra Ser havia menção à chuva, âncora de lembranças em sua narrativa. As guitarras de Dafré explodem após o prelúdio da angústia ao violino de Kostchak. Em Eu Preciso de Você a banda apresenta uma doce balada pop, numa letra não-óbvia. É aquele momento de dizer que compositores menos talentosos não alcançariam a sutileza presente. A paixão e o ardor são desenvolvidos em sua curta duração. Se a alma não sente saudades de nada, os corpos se dispõe à concretude do enlace.
          Foi sozinho o meu caminho, quem ia cuidar de mim melhor que eu? Casa Vazia está repleta de expectativa. Haverá mudança? Se lar é onde o coração está, onde está o coração de alguém que não tem ninguém? É como a frase-motor da obsessão do jovem Vilnius Lancastre no romance Ar de Dylan: Quando escurece precisamos sempre de alguém. Você acredita num sentimento maior e anda pelas ruas o esperando, sem de fato compreender qual é o objeto desta espera, como saberá reconhecer? Há quem me pergunte a razão de gostar tanto tanto de Vanguart. No início era mais subjetivo e estético. No ano em que lançavam o primeiro álbum eu começava a compor e a certeza de que se podia fazer canções refletindo a próprio-Eu, independendo do resultado. Com o passar dos anos a identificação com o trabalho só fez crescer. Quente é o Medo também vem sendo apresentada pela banda desde o lançamento do segundo dvd. Naquele dia, o trompete fazia parte do arranjo. Será que pode vir como uma surpresa no decorrer desta nova turnê? Essa é uma das curiosidades que a audição suscitou. Voltando à canção: a sintonia entre a guitarra e o violino merece destaque nesta faixa, sua letra vem como um contraponto às incertezas. Aqui há entrega e partilha. "o que é meu é seu e esse mundo é nosso". O medo é visto como propulsor de transformações. 
       Quem é família sempre aparece. O tecladista e membro fundador Luiz Lazzaroto entrou em recesso da banda há pouco mais de um ano. Ele dá as teclas em Menino. Era 1985 e The Smiths já pediam que não se esquecesse as canções que nos salvaram e preencheram a vida. Menino é assim, boia salva-vidas, tábua de salvação ou outra metáfora a sua escolha. Quantos sonhos deixamos escorregar pelo caminho por receios diversos, julgamentos, pressões... Há uma primeira vez para tudo. Será? Talvez as palavras não devessem doer. As questões do tempo podem se aplicam a muitos campos da vida. Há uma frase que ecoará a cada pensamento agora: vai, e faz o que você não fez!
           Eis então a melhor faixa de encerramento entre os quatro álbuns do Vanguart: Pancada Dura. Há sempre alguma partida. Poetas inventam viagens, vão embora sem saber para onde, vão embora levando o amor consigo. Vão, mas voltam! Vão viver o que for mesmo que os faça chorar. . A canção contempla um pouco de tudo o que a criação é capaz de atingir. As guitarras nos alvejam antes de podermos sequer imaginar o piano ou o dedilhar violonístico, há o baixo sempre urgente, a voz catártica. Como em outros momentos há Deus. A investigação da vida prossegue num continuum. No instante em que o trompete chega o arco do violino já está a deslizar nos levando a navegar por um rio escarlate e a canção se encerra no exato instante em que desejamos mais. A espera pelo disco findou, e, o resultado não poderia ser melhor. A identidade coletiva da banda manifesta esmero e esboça novas possibilidades para o futuro, ao tempo que apara arestas passado num todo coeso; O melhor álbum da banda.

domingo, 23 de abril de 2017

II de Hilda Hilst (O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade)

“Nada me entra na alma, palavras grudadas à página, nenhuma se solta para agarrar meu coração, tantos livros e nada no meu peito, tantas verdades e nenhuma em mim, o ouro das verdades onde está? que coisas procurei? que sofrido em mim se faz matéria viva?” A Obscena Senhora D, Hilda Hilst


         Coincidências:
       Que eu esteja num vinte e três do quatro escrevendo algo acerca de uma escritora nascida no dia vinte e um. Que o último post de março fosse dedicado também a um poema musicado, um de Drummond. Ainda mais: que o mesmo Drummond em 1952 dedicara um poema à Hilda Hilst. Ou mesmo que, sua cidade natal, Jaú, fizesse parte, ainda que enviesada, de uma série de conteúdos que acabaram em minhas canções em lugar da terapia. É mais provável que o lançamento do livro Da Poesia pela Companhia das Letras tenha feito com que eu permanecesse com a poeta em mente. E aí resta ser claro: nunca ouvi as composições de Adoniran Barbosa ou de Gilberto Mendes inspirados em seus textos. Céus!
         Se bem me lembro, meu primeiro contato com o "nome" Hilda Hilst foi no ano de 2013, trocando cartas virtuais com Kariny menciono um trecho do poema 42 Mercy Street de Anne Sexton: "I walk in a yellow dress/and a white pocketbook stuffed with cigarettes,/enough pills, my wallet, my keys,/and being twenty-eight, or is it forty-five?/I walk. I walk./I hold matches at street signs/for it is dark,/as dark as the leathery dead/and I have lost my green Ford,/my house in the suburbs,/two little kids/sucked up like pollen by the bee in me/and a husband/who has wiped off his eyes/in order not to see my inside out/and I am walking and looking/and this is no dream/just my oily life/where the people are alibis/and the street is unfindable for an/entire lifetime." Ela não levou muito tempo para replicar "me fez lembrar um pouco de Hilda Hilst" de posse daquele nome instigante, não demorei a me debruçar em alguns de seus poemas disponíveis na internet. E então, por simples identificação, tentei musicar alguns de seus poemas. Essa gravação data de setembro daquele ano. Uma demo do que viria a ser o álbum "O Relógio dos Dias" e que nunca passou de mais uma ideia em meu cemitério das vontades. 



O POETA INVENTA VIAGEM, RETORNO
E MORRE DE SAUDADE

II

Meu medo, meu temor, é se disseres:
Teu verso é raro, mas inoportuno.
Como se um punhado de cerejas
A ti te fosse dado
Logo depois de haveres engolido
Um punhado maior de framboesas.

E dirias que sim, que tu me lembras.
Mas que a lembrança das coisas, das amigas
É cotidiana em ti. Que não te enganas,
Que o amor do poeta é coisa vã.

Continuarias: há o trabalho, a casa
E fidalguias
Que serão para sempre preservadas.
Se és poeta, entendes. Casa é ilha.
E o teu amor é sempre travessia.
Meu medo, meu terror, será maior
Se eu a mim mesma me disser:
Preparo-me em silêncio. Em desamor.
E hoje mesmo começo a envelhecer.

Quando é touro é um meio fecundo em cada semente plantada um sorriso de gratidão. Haja bom tempo ou não. Oswaldo Montenegro, Aos Filhos de Touro.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Erwin Wurm - O Corpo é a Casa - CCBB

"Pois o fato imediato é simultaneamente ordinário e duvidoso - um poste de luz é apenas um poste de luz, mas também pode ser diversas coisas. Sempre falta alguma coisa no aqui e no agora, de tal modo que a compreensão de algo reside paradoxalmente em certa renúncia a compreender este algo. Não posso compreender o fato que existo, mas posso escolher qual finalidade minha existência possui neste mundo em que me é dado a existir. Não posso decidir como o mundo deveria ser, mas posso decidir como sou neste mundo." Excerto de Cinismo como Potência, de Marcos Beccari no livro Existe Design? Indagações Filosóficas em Três Vozes 
Cena do vídeo da canção Can't Stop com, à época, com o guitarrista John Frusciante

         Em 24/01/2003 o clipe de Can't Stop era lançado. Mark Romanek dirigiu o Red Hot Chili Peppers em uma série de ações inspiradas nas esculturas do artista austríaco Erwin Wurm, entre os movimentos criados está a foto que ilustra esse post. Freei o ímpeto de fazer um gif. Muito provavelmente, não resistirei à intenção de colocar o vídeo. Quantas oportunidades uma pessoa pode ter de ver uma ala dedicada à reprise ininterrupta do vídeo de uma de suas bandas favoritas? Mais: me pergunto quantos jovens podem ter passado pela exposição e conhecido a banda, acessado o YouTube em seus smartphones e marcado o clipe para assistir mais tarde? Como sempre, divago... melhor agir ao perceber com a lembrança do link:




         Levei quase quinze anos para estar em meio a tais obras, poder ver os visitantes a se tornar 'one-minute sculptures' criou uma nova dimensão para a apreciação da arte, afinal, ainda que as instruções fossem as mesmas a ação de cada indivíduo tornaria a obra distinta. Dentro disso, aqueles que se dirigiram ao Centro Cultural Banco do Brasil acompanhados se deram bem no quesito "criações-de-obras-coletivas-por-minuto", já outros dados a - solipsismos? - caminharem calados e metidos consigo mesmos parecia mais prático se deter por instantes contemplando a diversão coletiva, esperando a tão sonhada brecha para vencer a si mesmo e pedir a alguém que tire uma foto para posteridade, até que a batalha é perdida e é momento para mudar de ala.

A tentativa de encontrar enquadramentos inusitados em meio às obras.
         "Metaforicamente, pode-se entender que a mesma energia que esculpe um bronze ou um ferro é a energia que esculpe nossos corpos. A caloria que nos faz ganhar ou perder peso é a mesma força que briga com as formas da escultura. Você é o escultor do seu corpo; corpo é obra, obra é corpo." Creio tenha sido o primeiro conceito artístico inquietante a que me deparei nesse ano de 2017. Por carregar uma verdade inconveniente e me fazer sentir um escultor de insucessos, carregando em si o cemitério das vontades. Quem sabe se a divisão entre a escrita, a composição, os desenhos fosse feita de maneira igualitária com as pedaladas, os abdominais e os alongamentos. Resta seguir o lema que o Dr. Gregory House retirou dos Stones: You Can't Always What You Want, não. Recorrer a uma frase como essa seria, provavelmente, apenas outra fuga e o tempo da fuga acabou. Pelo menos até que seja tempo outra vez.

Colocar O Artista que Engoliu o Mundo próximo à cafeteria era a ironia derradeira?

domingo, 9 de abril de 2017

Desejo de um Rio

"De muito amor ao viver./De esperança e medo se libertar,/Nos agradecemos um breve agradecer/ A quaisquer deuses que possam escutar/Que não haja vida que sempre viva;/Que não haja defunto que reviva;/Que o mais tortuoso rio à deriva/Serpenteie seguro para o mar."    Trecho de O Jardim de Proserpina (1866) de Algernon Charles Swinburne em tradução de Ana Cláudia Fonseca e Cláudia Gerpe Duarte

Desejo de um Rio com uma onda inspirada em A Grande Onda de Kanagawa, do artista Katsushika Hokusai


Desejo de um Rio (2010)

Era um rio que queria alçar vôo
Ninguém notava suas lágrimas
Pudera ele conhecer os céus
Os mares o achavam tolo
O rio não guardava mágoas
Queria estar além dos véus

Ria rio, sem você não há mar algum
Ria rio, tuas águas lhe afagam

Você não está Só


Página sete de meu primeiro Moleskine (2010)
         - Onde quer ficar?
         - Deixe-me pensar, há pouco lugar.
         - Posso sugerir? Se sim, sugiro o terminal, se não nem faz mal...
         - É. Por ali há bancos e verdejar.
         - Hoje não haverá atraso
         - Bom é saber tão cedo. Diz-me tua urgência.
         - É que, de repente, fez-se luz em mim.
         - Como um chamado?
         - E sem você do lado.
         - (Como um chamado)
         - Vou elevar paz, me purificar.
         - Eu não entendo, verdade, vou sentir saudade. Se é pra melhor, quem vai dizer?
         - Tenha calma, não é um adeus.
         - Adiantaria propor outra fuga?
         - Pouco ou quase nada.
         - É uma acertada decisão, você verá.
         - O que vejo lá? É tua condução.
         - Não se esqueça, não é um adeus.

      Revirando meu primeiro Moleskine dei de cara com esse diálogo. Tentativa de descrever uma fissura, sem dizer. O mesmo diário em que encontrei a letra de How Many Restarts Left na segunda página e a letra que viria a ser Desejo de um Rio na sétima. Se o sete pode for mesmo um número sagrado e perfeito haveria uma ligação entre a página sete e eventos colocados em movimento partindo da sétima série. Isso tornaria essa música a faixa sete na compilação O Tempo Passado, quinta demo de composições da Falsa Modéstia, o que não ocorre. Ela é a sexta. Se eu considerasse nomear as canções à moda de Dave Matthews ela seria, certamente, a #56 dessa banda fantasma. Considerando a altura de 2010 em que foi escrita, posso, afirmar fazer parte de minha "lira dos vinte anos particular". Outra hipótese seria a de que o embrião da composição teria sido lançado ao solo no breve contato com a canção do grupo Sagrado Coração da Terra: Sob o Sol. Ainda que não tenha acompanhado a trama da novela O Clone, a letra me alcançara e ela figura junto a Por um Triz - de Lulo Scroback - como aquelas músicas que, a cada ano reservo alguns minutos para audições consecutivas. Divago, todavia. Voltando ao embrião: se o que dizem do bambu chinês é que cresce por cinco anos no subterrâneo, pode ocorrer o mesmo com uma canção?

           Essa letra é mais um produto da "teoria da mente"; Diferente de uma personificação mais subjetiva como a de O Sol Só II, Desejo de um Rio é resultado da tentativa de poetizar um conflito existencial de maneira projetiva, ainda assim, sempre estive preocupado com uma questão: qual o limite entre saber escrever e, de fato, sentir o que se escreve? porque para entender um amor assim é preciso conhecer o amor de fato! sou pretensioso ou demasiado obtuso? Tenha calma, leitora ou leitor, tentemos seguir esse parágrafo sem mais interrogações eruptivas. Musicalmente, tenho a referência do músico norte-americano Bill Callahan em seu disco de 2009 Sometimes I Wish We Were An Eagle. O violão dedilhado e suas paisagens bucólicas me inspiraram a buscar acordes numa afinação Open D - curiosamente, quando ensaiava nessa afinação acabei compondo a melodia de Tudo Depende de Conforme For -  e, justamente por desconhecê-la, a limitação permitiu ser preciso. Há momentos em que é possível se colocar no lugar de uma pessoa, perceber a desordem, a ferocidade remota ao tempo que se percebe a construção/frustração de sonhos que impedem a colheita do mel da vida. Você sabe que se vivesse num mundo perfeito, seria capaz de entregar respostas e desdobramentos, mas não é assim. A impotência ao ver uma pessoa como "o rio" me levou ao ato de expressar o entendimento sabendo que, um dia, a vida haveria de estar melhor. Enquanto há vida, há mudança. Enquanto há mundo, há dança.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Zeca Baleiro - Piano e Violoncelo (Sesc Pinheiros)

"Ser totalmente compreendido é um pouco frustrante para o artista. É sempre a minha visão, com as referências que tenho, diante de outras. É um pequeno confronto" - Zeca Baleiro em entrevista ao Diário do Grande ABC em abril de 2012
Foto: Rama de Oliveira (Divulgação/SESC)
PRÉ-SHOW 

        - Alguém tem ingresso para o Zeca Baleiro?
A bela portando jaqueta jeans estampada Toy Story pergunta a um grupo repousando no granito polido. Duas dezenas menos cinco respondem num quase uníssono sorriso não, todos querem, aqui é a fila de espera. Casais, amigas, senhores. Espalhados pelo espaço haviam mais esperançosos. A atendente da bilheteria fora solícita: Se surgir alguém vendendo vocês ficam livres para comprar, o ingresso não é nominal.
         Tinha quem estivesse sentado tranquilamente, de cócoras, posição de lótus, Um imitava O Pensador de Rodin. A baixa temperatura motivava todos a retirar a elegância dos cabides. Cachecóis, sapatinhos de cristal. Há até um rapaz com uma jaqueta da CBF, artigo que vem se mostrando mais raro de encontrar pelas ruas dados os recentes casos de corrupção. Há quem coma pipocas e há senhoras carregando antúrios. Desocupado, decido passar o tempo praticando leitura orofacial. Os lábios de uma moça estão dizendo "pegue minha mão me leve para onde quiser" não é para mim que ela se dirige, é claro. E sim com o maranhense entoando em seus ouvidos, em suas mãos flores brancas, radiantes num buquê. Flores crescidas no asfalto? O livro de Leon Cakoff em minhas mãos não podia ser mais oportuno Ainda Temos Tempo.
         Dou o play em Era Domingo, mesmo sabendo ser sábado. Conheço a dor da espera por ingressos, fico na expectativa de que alguém da fila consiga entrar. Deixo que as rolantes me guiem ao Teatro Paulo Autran. Deixando de lado meu Cakoff ao ver A Rede Idiota e Outros Textos, coleção de crônicas de Baleiro para a revista Istoé. Como deixei passar? Seja como for, adquiro um exemplar para unir a meu Bala na Agulha. Aproveito o ensejo e pergunto se, por um acaso, Baleiro não ficaria para falar com o público ao final e a água fria do banho me pega. Falar com o artista, que quer dizer? 249 dias antes eu o encontrara na Livraria da Vila e entreguei uma cópia do texto falando de Era Domingo. Nunca descobri o que ele achou. Ainda temos tempo.

Zeca Baleiro - Violoncelo e Piano
          
Início do espetáculo do dia 01/04
         Acompanhado por Adriano Magoo, que revezaria entre o piano e o acordeon e Lui Coimbra, no violoncelo e vocais. Zeca Baleiro chega ao palco. É curioso vê-lo sem a presença de Tuco Marcondes e Fernando Nunes. No decorrer do espetáculo, Zeca cria diversos acompanhamentos percussivos com sua voz e um gravador com loop. A primeira canção é Me Deixa em Paz de Monsueto Menezes e Airton Amorim, imortalizada pelo Clube da Esquina. Esotérico, de Gilberto Gil, é cantada por muitos dos presentes. Canção de 1982, no ano de 2012 Gil comentou ao Correio Braziliense que a letra era "Uma tentativa de transpor a ideia do mistério divino, místico-religioso, para o campo do amor terreno; de desmistificar e humanizar a categorização do esotérico como algo inatingível, colocando-o como inerente à nossa natureza, à complexidade de nosso afeto". Seguida por Não Adianta do "maldito da MPB" Sérgio Sampaio, presença garantida nas apresentações do cantor maranhense que, em 2006, lançou o cd póstumo "Cruel" e já versionou canções como Tem que Acontecer e Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua. 
         A quarta canção é Telegrama tornada um tango e cantada pelo público à plenos pulmões. Ao final, Zeca conta que, anos atrás, um condômino se recusou a participar de uma reunião de condomínio por saber que o compositor estaria presente. A alegação era a de o verso "mais solitário que um paulistano" tê-lo ofendido. Ele explicou à esposa do queixoso que não era pessoal, poderia ser um curitibano, belo-horizontino, era meio um elogio às avessas. Ainda falando da canção ele explica que numa participação no programa Afinando a Língua de Tony Bellotto, do canal Futura, o apresentador brincou que Zeca o atingia duplamente na letra da canção, tanto por falar do "paulistano" quanto pelo verso "mais bobo que banda de rock". A referência para o verso vinha da cena emocore que estava em evidência nos idos de 2002.
         Parceria com Fagner no álbum homônimo Uma Canção no Rádio é a quinta canção do repertório e então Zeca realiza sua versão para a canção Dia Branco de Geraldo Azevedo. Não conhecia a canção, embora, pela receptividade do público descobri ser um sucesso da música popular. Paralelas, de Belchior, é a sucessora. Parte do repertório funciona como uma viagem pela história da música brasileira que não se rende aos lugares comuns. Baleiro, então,traz aos holofotes o choro de Severino Araújo - e letra posterior, de Fausto Nilo - Espinha de Bacalhau. O cantor ainda realizou um curto solo com o que pareceu ser uma flauta de êmbolo. Baleiro conta que a visita de um casal de amigos com o filho o lembrou de uma canção que fizera chamada Papai e Mamãe com versos tais: 

Você gosta de brincar de cavalinho, mamãe também gosta
Papai também gosta
Deixa a gente brincar só um tiquinho
Deixa o papai brincar deixa a mamãe brincar de cavalinho

       Proibida pra Mim vem em um arranjo com acordeon e violão, encerrando com os versos do refrão de Zóio de Lula. Baleiro já contara ter sido convidado a tocar a música na cerimônia de casamento de Chorão com Graziela Gonçalves. A admiração de Zeca pela obra da banda Charlie Brown Jr. É conhecida há muito tempo. Bandeira vem para mim com um significado especial, por conta da música "eu não quero isso seja lá o que isso for" junto a "noves fora zero" se tornaram locuções constantes em meu cotidiano. O artista fala um pouco do surgimento do espetáculo Piano e Violoncelo que começou com Voz e Piano em Brasília em 2013 e foi repaginado em 2016 para concerto no Festival Mimo em Olinda no pátio do Mosteiro de São Bento. O formato permitiu experimentações, lados b, e a releitura de outros compositores. Ele abre o espaço para Adriano Magoo apresentar ao piano a composição Cinco e Meia em Maceió e em seguida Lui Coimbra assume o vocal em uma parceria com Baleiro: Ouro e Sol versão em português para Fields of Gold, de Sting. Baleiro releva que tem composto forrós pé-de-serra. Não é afeito ao "forró-novo" mas acredita que há de haver espaço para todos, afinal, na origem, Luiz Gonzaga também foi tratado como um marginal, um cantor menor e não o gênio da música que foi. Então, vai que um novo surge? Quase todos os seus causos são pontuados pelo riso do público, misto de seu bom humor satírico. Com Lui Coimbra tornando o corpo de seu cello uma zabumba e Magoo no acordeon ele aproveita o ensejo para apresentar um desses forrós bem-humorados:

Você prefere o Safadão
E eu tô mais pra safadinho
Você não perde o Domingão
E eu sou mais o Dominguinhos

         Baleiro descreve o que o levou a compor uma canção dedicada ao prédio do Instituto Tomie Ohtake num retorno ao apartamento próximo viu a paisagem do sol alaranjado e o céu azul no cinza e rosa. Então, ainda que seja fã da artista plástica, sua referência para a canção Tomie Ohtake foi o edifício. Seguindo o relato de sua paixão por nomes ele fala que há vinte anos, prestes a lançar seu primeiro álbum Por Onde Andará Stephen Fry? ele mal conhecia o trabalho do ator mas uma nota no jornal contando de um desaparecimento após ver as críticas negativas a uma peça o inspirou. A intenção era chamar apenas de "Stephen Fry" mas foi demovido pelo pessoal da gravadora, uma vez que dois nomes próprios poderiam confundir os ouvintes "E se o artista se chamar Stephen Fry e o disco Zeca Baleiro"? 
          A Capella vem Pastiche em homenagem à atriz Irene Ravache que estava na plateia e tem verso dedicado. O show vai se encaminhando ao fim com Quase Nada e. pressentindo o fim, o público começa a pedir uma série de canções. Zeca até brinca que eventualmente fará um show interativo com escolhas do público. Penso que poderia ser usado um aplicativo similar ao que a banda Capital Inicial usou em um show de sua turnê Acústico em NYC, em São Paulo, para que os fãs votassem o bis. Depois de ouvir uma série de pedidos para Toca Raul, Zeca a recita para o deleite dos presentes e reverência ao compositor mítico. Um de seus clássicos do álbum Líricas, de 2000, Babylon é recebida com empolgação. "Tirem as crianças da sala!" a canção é Suíte do Quelemeu definida por Baleiro como um clássico do chulo brasileiro, surgido das brincadeiras rua e adaptada por Tavinho Moura. A canção faz parte da trilha sonora do filme Cabaret Mineiro de Carlos Alberto Prates Correia. O espetáculo encerra com uma composição de 1982 do paraibano Vital Farias Ai, que Saudade d'Ocê, sucesso já regravado por diversos artistas como Elba Ramalho, Fagner e o próprio Zeca Baleiro. Quando os artistas saíram do palco o público ainda se postou reverente aclamando a presença de Irene Ravache. A segunda, das três noites em que se apresentou no Sesc Pinheiros, foi um sucesso!