domingo, 9 de abril de 2017

Desejo de um Rio

"De muito amor ao viver./De esperança e medo se libertar,/Nos agradecemos um breve agradecer/ A quaisquer deuses que possam escutar/Que não haja vida que sempre viva;/Que não haja defunto que reviva;/Que o mais tortuoso rio à deriva/Serpenteie seguro para o mar."    Trecho de O Jardim de Proserpina (1866) de Algernon Charles Swinburne em tradução de Ana Cláudia Fonseca e Cláudia Gerpe Duarte

Desejo de um Rio com uma onda inspirada em A Grande Onda de Kanagawa, do artista Katsushika Hokusai


Desejo de um Rio (2010)

Era um rio que queria alçar vôo
Ninguém notava suas lágrimas
Pudera ele conhecer os céus
Os mares o achavam tolo
O rio não guardava mágoas
Queria estar além dos véus

Ria rio, sem você não há mar algum
Ria rio, tuas águas lhe afagam

Você não está Só


Página sete de meu primeiro Moleskine (2010)
         - Onde quer ficar?
         - Deixe-me pensar, há pouco lugar.
         - Posso sugerir? Se sim, sugiro o terminal, se não nem faz mal...
         - É. Por ali há bancos e verdejar.
         - Hoje não haverá atraso
         - Bom é saber tão cedo. Diz-me tua urgência.
         - É que, de repente, fez-se luz em mim.
         - Como um chamado?
         - E sem você do lado.
         - (Como um chamado)
         - Vou elevar paz, me purificar.
         - Eu não entendo, verdade, vou sentir saudade. Se é pra melhor, quem vai dizer?
         - Tenha calma, não é um adeus.
         - Adiantaria propor outra fuga?
         - Pouco ou quase nada.
         - É uma acertada decisão, você verá.
         - O que vejo lá? É tua condução.
         - Não se esqueça, não é um adeus.

      Revirando meu primeiro Moleskine dei de cara com esse diálogo. Tentativa de descrever uma fissura, sem dizer. O mesmo diário em que encontrei a letra de How Many Restarts Left na segunda página e a letra que viria a ser Desejo de um Rio na sétima. Se o sete pode for mesmo um número sagrado e perfeito haveria uma ligação entre a página sete e eventos colocados em movimento partindo da sétima série. Isso tornaria essa música a faixa sete na compilação O Tempo Passado, quinta demo de composições da Falsa Modéstia, o que não ocorre. Ela é a sexta. Se eu considerasse nomear as canções à moda de Dave Matthews ela seria, certamente, a #56 dessa banda fantasma. Considerando a altura de 2010 em que foi escrita, posso, afirmar fazer parte de minha "lira dos vinte anos particular". Outra hipótese seria a de que o embrião da composição teria sido lançado ao solo no breve contato com a canção do grupo Sagrado Coração da Terra: Sob o Sol. Ainda que não tenha acompanhado a trama da novela O Clone, a letra me alcançara e ela figura junto a Por um Triz - de Lulo Scroback - como aquelas músicas que, a cada ano reservo alguns minutos para audições consecutivas. Divago, todavia. Voltando ao embrião: se o que dizem do bambu chinês é que cresce por cinco anos no subterrâneo, pode ocorrer o mesmo com uma canção?

           Essa letra é mais um produto da "teoria da mente"; Diferente de uma personificação mais subjetiva como a de O Sol Só II, Desejo de um Rio é resultado da tentativa de poetizar um conflito existencial de maneira projetiva, ainda assim, sempre estive preocupado com uma questão: qual o limite entre saber escrever e, de fato, sentir o que se escreve? porque para entender um amor assim é preciso conhecer o amor de fato! sou pretensioso ou demasiado obtuso? Tenha calma, leitora ou leitor, tentemos seguir esse parágrafo sem mais interrogações eruptivas. Musicalmente, tenho a referência do músico norte-americano Bill Callahan em seu disco de 2009 Sometimes I Wish We Were An Eagle. O violão dedilhado e suas paisagens bucólicas me inspiraram a buscar acordes numa afinação Open D - curiosamente, quando ensaiava nessa afinação acabei compondo a melodia de Tudo Depende de Conforme For -  e, justamente por desconhecê-la, a limitação permitiu ser preciso. Há momentos em que é possível se colocar no lugar de uma pessoa, perceber a desordem, a ferocidade remota ao tempo que se percebe a construção/frustração de sonhos que impedem a colheita do mel da vida. Você sabe que se vivesse num mundo perfeito, seria capaz de entregar respostas e desdobramentos, mas não é assim. A impotência ao ver uma pessoa como "o rio" me levou ao ato de expressar o entendimento sabendo que, um dia, a vida haveria de estar melhor. Enquanto há vida, há mudança. Enquanto há mundo, há dança.

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